Menu
Política & Poder

Marco Temporal: confira os bastidores do cansaço dos indígenas diante da indefinição

Em meio à poeira da seca que pesa nos pulmões, em um espaço ao lado do Teatro Nacional, Brasília recebeu cerca de 6,5 mil indígenas

Redação Jornal de Brasília

14/09/2021 17h43

Foto: João Victor Canizares

Gabriela Bernardes, João Victor Canizares e Rayssa Loreen
Jornal de Brasília / Agência de Notícias UniCEUB

O julgamento sobre a validade do “marco temporal” pode voltar a receber os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta (15.9). A expectativa da votação chegou a mobilizar 6,5 mil indígenas de todo o país a Brasília, mas praticamente todo o acampamento teve que ser desmontado e grande parte das pessoas voltaram para as suas terras de origem, tamanha foi a demora na decisão. Há ainda indígenas na capital que buscam doações para permanecerem e manterem a opinião pública atenta ao que se passa.

O problema é que existe a possibilidade que o julgamento seja adiado de novo. O cansaço e a frustração transformaram-se em rotina para os indígenas. A equipe de reportagem acompanhou o acampamento por 15 dias e ouviu as angústias deles enquanto estiveram na capital.

Em meio à poeira da seca que pesa nos pulmões, em um espaço ao lado do Teatro Nacional, Brasília recebeu cerca de 6,5 mil indígenas. Julio Karai, de 38 anos, do povo Guarani, enquanto procurava uma sombra para sentar, lamentou: “A gente ‘era’ quase 7 mil pessoas no começo do acampamento. Eles adiaram a definição e nem sabemos se essa pauta vai ser votada ainda. Isso enfraquece a gente mentalmente e até espiritualmente”. Incansáveis metros de lona plástica e bambu abrigaram, em meio à uma pandemia mundial, o maior acampamento indígena já visto no Brasil desde a promulgação da Constituição Brasileira, em 1988. Eram 176 etnias alocadas em mais de três mil barracas, aguardando a votação do Marco Temporal para definir o futuro do processo de demarcação das terras indígenas em todo o país.

A polêmica está no fato que os ministros precisam decidir se é válida ou não a tese que indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Julio Karai é uma das pessoas que viveu essa exaustiva espera. A esperança que pairava entre todos que vieram de diferentes regiões do Brasil e a pulsante vontade de comemorar mais um passo em direção à uma vida menos ameaçada não esconderam o cansativo preço dessa caminhada. O líder e representante de todas as aldeias do povo Xokleng presentes no acampamento, o cacique Nilton Ndili, de 44 anos, expressou: “É muito humilhante pra gente, é muito humilhante. Nossos caciques anteriores que começaram essa luta nem estão mais vivos e a gente vê essa pauta sendo adiada. A gente queria levar um resultado para a nossa base”. 

O Supremo Tribunal Federal (STF) vai avaliar se a terra indígena Ibirama Laklãnõ, habitada pelos povos Xokleng, Guarani e Kaingang deve ser ou não incorporada às áreas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina. Trata-se do Marco Temporal, tese defendida por setores políticos, econômicos e ruralistas interessados na exploração de reservas indígenas, que está em pauta no Supremo desde junho. A Corte, porém, tem postergado a decisão, e o julgamento da questão já foi adiado mais de três vezes. 

“Evidentemente é parte do jogo, da pressão do agronegócio e dos setores conservadores que querem aprovar o Marco Temporal. Isso tem efeito na sociedade.”, comenta o ativista e político Guilherme Boulos (PSol)

Para os indígenas em Brasília, as consecutivas protelações intensificaram ainda mais as expectativas e anseios da comunidade. “A gente chegou aqui em Junho e foi adiado para o mês de agosto. E agora foi adiado para o dia primeiro, que é quarta-feira. Então a gente fica em uma expectativa grande. Mesmo assim, a gente acredita no trabalho do STF, a gente acredita que eles têm esse raciocínio de não eliminar o indígena” explicou o cacique Nilton Ndili novamente.

O ACAMPAMENTO

“Sangue indigena. Nenhuma gota a mais”. Esse, entre inúmeros, foi um dos mais fortes e escutados gritos pelo acampamento durante todo o dia e noite. Os cantos, orações, bênçãos e rituais acontecem ininterruptamente. Para esses povos, representa a proteção, a força, é a única arma que possuem em mais essa batalha contra os “colonos”, segundo eles, os brancos. Era visível como todas as gerações seguem essa tradição com muita fé, independentemente da etnia. “A gente saiu da nossa aldeia com crianças e jovens, e aqui tem muitos não indígenas que passam gritando ‘vamos matar os índios’ e buzinando. A gente fica preocupado com esses ataques verbais e nossa segurança”, explicou Julio Karai sobre o preconceito sofrido no acampamento e a preocupação em retornar logo às suas aldeias.

O acampamento chegou, depois, a ser instalado no espaço da Funarte. Com árvores e gramado abundante, o clima melhorou um pouco. Essa melhora também aconteceu porque o número de participantes já era menor. Os custos com transporte, alimentação, e a necessidade de retornar aos seus parentes e aldeias foi, aos poucos, levando essas pessoas de volta pra casa.

“Vamos revezar. Enquanto uns voltam pra aldeia, outros vem pra cá e assim vamos até o final” afirma Julio Karai. A Apib é a entidade que lidera a organização desse movimento como um todo. Garante estrutura de máxima importância para que o acampamento aconteça de forma histórica.

Cozinha que serve refeições diariamente, palco equipado para plenárias que acontecem a todo o vapor, estrutura de comunicação para profissionais que vêm de todo o  país para cobrir o evento, tenda de saúde para atender aqueles que possam precisar e por aí vai. Doações, vaquinhas, campanhas de colaboração e apoios viralizam pelas redes sociais diariamente.

“Não tem dificuldade, não. Isso aqui é a nossa vida todo dia, né? É assim que a gente vive”, responde Sônia Guajajara quando perguntada sobre as dificuldades de organizar um acampamento dessa proporção.

Sônia é professora, enfermeira e Coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Para ela, caso os povos indígenas vençam essa batalha, isso significa não retroceder

“Essa luta é para não acabar com um direito adquirido. Se ganharmos vamos seguir na luta pela demarcação das terras indígenas”.

Nilton Ndili desabafa sobre a situação: “Estamos aqui sofrendo, passando por momentos difíceis, momentos críticos“. Presente no maior acampamento indígena do Brasil, ele fala mais sobre a situação ser tão delicada: “A gente está aqui porque se nós não trabalharmos, quem vai trabalhar por nós?”. 

Ao contrário do que se pensa, esses povos estão sozinhos. A produção, a organização e principalmente a força desse acampamento, é feita por eles e só. Volta e meia aparecem lideranças políticas e de movimentos sociais para deixarem falas nas plenárias. Recebem aplausos, tiram selfies e voltam à sua agenda corrida. A real importância que o momento histórico vivido merece, só os indígenas percebem. E por isso estão presentes. E assim pretendem continuar. Fazendo sua existência,  posterior ao ano de 1500, ser mais relevante que os recordes de produção e exportação do agronegócio em Pindorama. 

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado