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Política & Poder

Incra sob Bolsonaro troca desapropriações e assentamentos por emissão de títulos

O governo e os ruralistas têm usado os dados de titulação de terra, mais de 340 mil entregas desde 2019, para afirmar que promove uma libertação

FolhaPress

22/10/2022 10h01

Ranier Bragon
Brasília, DF

Adversário declarado de grupos como o MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o presidente Jair Bolsonaro (PL) entregou a gestão da reforma agrária para a bancada ruralista e intensificou uma guinada iniciada pelo antecessor, Michel Temer (MDB).

Em meio à ampliação do estrangulamento orçamentário –de uma média anual de R$ 4,8 bilhões de verbas discricionárias nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para R$ 614 milhões sob Bolsonaro–, a atual gestão praticamente zerou as desapropriações de terras e os assentamentos de famílias, transferindo o foco para a entrega de títulos de propriedade, a maioria provisórios, a antigos beneficiários.

O governo e os ruralistas têm usado os dados de titulação de terra, mais de 340 mil entregas desde 2019, para afirmar que promove uma libertação dos pequenos agricultores do jugo do MST.

O movimento e especialistas na área apontam um descalabro na gestão da reforma agrária e um sucateamento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que teria se transformado em um mero emissor de títulos sem a mínima oferta de sustentabilidade aos assentados.

Em maio, por exemplo, a direção do órgão circulou um informe interno em que dizia estar sem nenhuma verba de livre destinação e que, por isso, determinou a suspensão de atividades, incluindo ações técnicas de campo, como vistorias, fiscalizações e supervisões.

No dia seguinte à publicação da notícia pela Folha de S.Paulo, Bolsonaro afirmou que iria pedir ao ministro da Economia, Paulo Guedes, a liberação de dinheiro para retomar as atividades do órgão.

Desde que assumiu, Bolsonaro tem colocado em prática uma política agrária comandada por ruralistas e oposta a movimentos como o MST. Em seu primeiro ato, transferiu o Incra da Casa Civil para o Ministério da Agricultura, pasta que foi comandada por Tereza Cristina, uma das líderes da bancada ruralista.

Para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, nomeou um inimigo histórico dos movimentos sociais do campo, o ruralista Nabhan Garcia, que por anos comandou a UDR (União Democrática Ruralista).

Nos primeiros dias da gestão sob Bolsonaro, o Incra paralisou todos os cerca de 250 processos de aquisição e desapropriação de terras para a reforma agrária, medida que serviria de prenúncio a um futuro de estrangulamento orçamentário e fim da política de criação de assentamentos.

Além da restrição orçamentária, o número de terras desapropriadas e de famílias assentadas no governo atual foi praticamente zero. Nas gestões de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula, ou seja, de 1995 a 2010, foram mais de 14,5 milhões de hectares desapropriados e 1,15 milhão de famílias assentadas.

Documento interno do próprio Incra informou, em 2019, que havia 111 mil hectares prontos para a reforma agrária, com capacidade para assentar 3.862 famílias, mas que tudo estava parado.

Incra, governo e ruralistas reconhecem a paralisia, mas afirmam, em linhas gerais, que a reforma agrária não se resume à desapropriação e à distribuição de terras e que, em um cenário de orçamento bastante limitado, é preciso priorizar a consolidação dos atuais assentamentos, tendo como foco a entrega de títulos.

A titulação das propriedades rurais da reforma agrária insere-se no objetivo político de esvaziar a influência do MST sobre os assentados, além de buscar a abertura de uma frente eleitoral em um terreno tradicionalmente controlado pelos partidos de esquerda.

A partir de 2022, Bolsonaro intensificou a participação em eventos de entrega de documentos de propriedade, com beneficiados sendo levados ao palco para receber os papéis das mãos do presidente.

A Constituição determina que os beneficiários da reforma agrária devem receber documentos relativos à propriedade, inegociáveis por dez anos.

Hoje, há três tipos de título, concedidos após trâmite que envolve, além de partes burocráticas, a evolução da consolidação do assentamento e a produção dos assentados. O primeiro é provisório e chama-se CCU (contrato de concessão de uso), que permite o uso e a exploração da terra, além do acesso aos benefícios do programa de reforma agrária. Os outros dois são definitivos.

A CDRU (concessão de direito real de uso) pode ser concedida de forma coletiva ou individual, mas mantém o Estado como o proprietário da terra. Já o TD (título de domínio) é individual, e a propriedade é transferida para o assentado. Esse último, cumpridas algumas condicionantes, entre as quais o prazo de dez anos desde a obtenção do título provisório, pode ser negociado livremente.

Movimentos sociais, partidos de esquerda e especialistas são contra a política atual, que teria o objetivo de fazer as terras voltarem para a mão de latifundiários ou para o agronegócio, a preços baixos.

O MST defende a emissão das CDRU, de forma coletiva, sob o argumento de que o modelo fortalece o movimento de luta pelo campo e os assentamentos e permite a pequenos agricultores se unirem em prol de uma produção sustentável, além de evitar a captura das terras pelo agronegócio.

“O Incra, infelizmente, tornou-se uma locadora rural para grileiros de terra e latifundiários”, diz Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST. Segundo ele, há 120 mil famílias acampadas à espera de desapropriação e assentamento.

Conceição também afirma que um dos principais problemas foi a perda de assento, no governo, para a discussão das políticas da reforma agrária.

“Fecharam o diálogo, militarizaram o Incra, também sucatearam outras instituições, como Funai e tudo aquilo que tem a ver com ambiente e território nacional. Os números sob Bolsonaro são números para os latifundiários. Titulação para garantir que as terras públicas sejam griladas para os latifundiários.”

Ronilson Costa, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra –órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil–, afirma que desde Temer, que extinguiu o Ministério de Desenvolvimento Agrário, houve uma ação no sentido contrário aos trabalhadores rurais e de privilégios ao agronegócio.

Segundo ele, a mera entrega de títulos sem a oferta de apoio e de infraestrutura que ajudem as famílias a produzir e a permanecer nas propriedades levará as terras de volta ao latifúndio. “Há um abandono, um esquecimento, sobretudo nos assentamentos em situação mais crítica”, afirma.

Em nota, o Incra reconhece a queda orçamentária, mas diz que a execução da política de reforma agrária não se limita à obtenção de terras e ao assentamento de famílias e inclui, entre outras ações, oferta de crédito, habitação, supervisão ocupacional e titulação dos beneficiários.

A autarquia diz ter priorizado nos últimos anos ações de desenvolvimento e consolidação dos assentamentos e a titulação das famílias.

“A titulação é importante para assegurar o acesso às políticas de assistência técnica, crédito, seguro e comercialização da produção, além de ser fundamental para a sucessão familiar dos agricultores nos lotes com o documento definitivo”, afirmou o órgão.

O Incra disse ainda que em 2016 o Tribunal de Contas da União apontou indícios de irregularidades na execução do programa de reforma agrária em gestões passadas e que trabalha para regularizar a situação de beneficiários que, devido a isso, foram bloqueados pela entidade.

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