Rafael Balago
Washington, EUA
“Atrás de mim está a mais alta corte do país. Mas estamos aqui hoje em um de seus momentos mais baixos, em que uma maioria de direita, ilegítima, está disposta a tirar um direito constitucional”, discursou o senador Ed Markey, democrata de Massachusetts, na frente da Suprema Corte dos EUA, na terça (3).
Markey, 75, falava a ativistas que protestavam contra a provável derrubada do direito ao aborto no país. Um rascunho de decisão, vazado na última segunda (2), mostrou que há cinco juízes da mais alta corte americana favoráveis à mudança do entendimento sobre o tema, embora ainda não haja decisão oficial.
A divulgação do documento fez com que políticos e ativistas atacassem a corte e discutissem formas de mudar a composição do tribunal, hoje com seis juízes considerados conservadores e três progressistas.
De modo geral, expôs também a deterioração da imagem da instituição, que vê queda de popularidade.
Além das reclamações sobre a questão em debate, o vazamento da minuta gerou muitas críticas: a Suprema Corte é muito fechada e faz um controle rígido dos processos, o que gera suspeitas de que a entrega do documento à imprensa tenha sido feita por alguém da corte que quer interferir na decisão.
“A credibilidade da corte vem da ideia de que as decisões são fruto de processo cuidadoso de deliberação, com respeito aos precedentes judiciais. Reverter uma decisão de 50 anos trará danos à imagem de que o tribunal está acima da política. Esta é claramente uma corte ativista e conservadora que tem uma agenda política”, diz Jonathan Hanson, doutor em ciência política e professor na Universidade de Michigan.
Nos últimos anos, mais americanos passaram a criticar a atuação dos juízes. Uma pesquisa do Pew Research Center, de janeiro, mostrou que 44% dos americanos enxergam a atuação do tribunal de modo desfavorável, enquanto 54% a aprovam. O índice de rejeição é o maior já registrado na série histórica, que começa em 1985. A alta mais forte ocorreu nos últimos dois anos: em 2020, a rejeição era de 29%.
O instituto Gallup também detectou a piora. Seu estudo mais recente, de setembro de 2021, apontou 40% de aprovação e 53% de desaprovação. Os dados mostram também que 54% dos americanos dizem ter grande confiança na instituição. Entre os anos 1970 e 2010, esse índice sempre esteve acima de 60%.
“Queixas contra o tribunal e suas decisões são comuns. No entanto, o grau no qual a Suprema Corte se tornou um assunto partidário é um fenômeno relativamente recente. Nomeações se tornaram um tema muito importante em eleições presidenciais e foram uma das maiores razões para a vitória de [Donald] Trump em 2016”, avalia Casey Burgat, professor de política na universidade George Washington.
O aumento na rejeição foi puxado pelo descontentamento de democratas e progressistas, que viram o ex-presidente Trump nomear três juízes durante seu mandato (2017-2021). O republicano deixou claro nas campanhas de 2016 e de 2020 que usaria o cargo para nomear magistrados dispostos a votar de acordo com interesses conservadores, como vetar o direito ao aborto e impedir restrições no acesso a armas.
Para nomear os juízes, Trump teve ajuda dos senadores republicanos, que impediram o então presidente Barack Obama de indicar um novo nome no último ano de mandato. Depois, em 2020, fizeram o oposto: agilizaram procedimentos para que ele escolhesse Amy Coney Barrett pouco antes do pleito presidencial.
Parte dos democratas defende que as manobras foram ilegítimas, e alguns deles, como o senador Markey, apontam que a única forma de reverter o cenário é com outra jogada política: criar mais quatro assentos na Suprema Corte, de modo a diluir a maioria conservadora. Assim, o placar atual se tornaria 7 a 6 para os progressistas, já que o atual presidente, Joe Biden, tenderia a indicar nomes com esse viés.
No entanto, a medida tem poucas chances de avançar, pois depende do apoio de ao menos 60 senadores no Congresso. Os democratas possuem 50 cadeiras, e nenhum republicano deve apoiar a proposta. Se houvesse consenso entre os democratas, um caminho seria tentar mudar o chamado “filibuster”.
Sem o obstáculo, questões de peso exigiriam apenas vitória por maioria simples, mas até isso parece distante: não houve acordo no partido nem para aprovar um pacote de investimentos sociais de Biden.
Em 1937, o presidente Franklin Roosevelt tentou criar um mecanismo para criar novos assentos, expandindo a Suprema Corte para até 15 vagas. O democrata estava frustrado após ter várias medidas barradas na Justiça. A ampliação foi contida pelo Congresso, mas Roosevelt obteve vitória parcial: depois da tentativa, dois juízes que costumavam votar contra suas propostas mudaram de postura.
“Após a Segunda Guerra Mundial, houve a percepção de que poderes políticos ilimitados levaram aos horrores do nazismo e do fascismo, e os tribunais constitucionais ganharam mais força, como um freio aos outros Poderes e para ampliar o acesso aos direitos humanos”, afirma Rafael Mafei, pesquisador do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) e professor da USP.
Em funcionamento desde 1789, a Suprema Corte americana, nas últimas décadas, apresentava a tendência de mudar entendimentos para ampliar direitos, não para restringi-los. Em 1896, o tribunal deu aval à segregação racial em espaços públicos, sob argumento de que a separação não impediria a oferta de serviços iguais para todos. Meio século depois, em 1954, outros juízes consideraram que o conceito de “separados, porém iguais” não funcionava e que a discriminação de pessoas por cor era inconstitucional.
Agora, a provável reversão do direito à interrupção da gravidez representa, para os progressistas, um retrocesso via Suprema Corte. “Fico furiosa porque são cinco juízes que pensam que podem levar suas visões extremistas para toda a América. Lembre-se que 69% dos americanos querem manter Roe vs.
Wade'”, disse a senadora democrata Elizabeth Warren, citando a decisão que garantiu o acesso ao aborto.