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Mundo

Por dentro da corrida global para transformar água em combustível

Alguns especialistas em energia dizem que a lógica dos negócios do hidrogênio verde é em sua maior parte propaganda exagerada

Redação Jornal de Brasília

15/04/2023 8h13

Há muito tempo este tem sido um lugar tranquilo e sem muito destaque. Milhares de quilômetros quadrados de terrenos planos cobertos por arbustos e terra vermelha. O sol está caindo e o vento sopra forte.

São exatamente essas características que qualificam este pedaço remoto da região de Outback na Austrália para uma transformação iminente. Um consórcio de empresas do setor de energia liderado pela BP planeja cobrir uma extensão de terra equivalente a oito vezes a cidade de Nova York com até 1.743 turbinas eólicas, cada uma com quase a mesma altura do Empire State Building, junto com mais ou menos 10 milhões de painéis solares e mais de 1.500 quilômetros de vias de acesso para conectar tudo.

Na região de Pilbara, na Austrália Ocidental, e em dezenas de locais ao redor do mundo contemplados com vento e sol abundantes, os investidores enxergam uma oportunidade de gerar eletricidade renovável tão barata que usá-la para produzir hidrogênio verde se torna econômico. Mesmo que apenas alguns dos projetos se tornem realidade, trechos extensos de terra seriam devidamente transformados.

O projeto é um exemplo de uma aposta global, no valor de centenas de bilhões de dólares, feita por investidores, incluindo algumas das indústrias mais poluentes do mundo.

No ano passado, os subsídios de governo aceleraram as ações na União Europeia, na Índia, na Austrália, nos Estados Unidos e em outros lugares. A Lei de Redução da Inflação, a regulamentação histórica do governo Biden contra as mudanças climáticas, propõe reduzir o valor doméstico do hidrogênio verde para um quarto do atual em menos de uma década por meio de incentivos fiscais e US$ 9,5 bilhões em subsídios.

“Estamos prestes a dar os primeiros passos”, disse Anja-Isabel Dotzenrath, que já liderou a maior empresa de energia renovável da Alemanha e agora comanda as operações de gás e energia de baixo carbono da BP. “Acho que o hidrogênio vai ganhar espaço ainda mais rápido do que a energia eólica e solar.”

Nem todo mundo pensa assim. Os desafios surgem em todos os níveis, do molecular ao geopolítico.

Alguns especialistas em energia dizem que a lógica dos negócios do hidrogênio verde é em sua maior parte propaganda exagerada. Os críticos acusam os defensores da proposta de interesse próprio ou até mesmo de autoilusão. Outros consideram que o hidrogênio desvia investimentos cruciais de tecnologias mais seguras de redução de emissões, o que representa uma ameaça para as ações de combate às mudanças climáticas.

De qualquer modo, se as projeções mais otimistas se mantiverem, o hidrogênio verde na indústria pesada poderia reduzir as emissões globais de carbono em 5%, talvez até duas ou três vezes mais. Nesses cenários, que estão longe de serem certos, o hidrogênio desempenha um papel crucial no controle do aquecimento global.

Fatih Birol, o economista turco que lidera a Agência Internacional de Energia, disse que raramente conhece pessoas que não acham o hidrogênio verde fascinante, com sua elegante elementaridade. A organização prevê que o hidrogênio verde atenderá a 10% da demanda global de energia até 2050.

Ele disse que as expectativas da agência foram baseadas no fato de que, se o mundo quiser limitar o aquecimento a 1,5 grau, “bastante hidrogênio verde precisa fazer parte do jogo”.

Um ‘desafio monstruoso’

Para o hidrogênio verde ter um impacto climático considerável, seu uso mais importante será na siderurgia, uma indústria em expansão responsável por quase 10% das emissões globais de dióxido de carbono, mais do que todos os carros.

No jargão do clima, as emissões da produção de aço são “difíceis de abater”. Os altos-fornos, os trens de carga, os navios cargueiros e os caminhões gigantescos utilizados na mineração exigem combustíveis pesados, como o carvão e o petróleo. Mesmo que pudessem ser eletrificados (e, por uma questão prática, hoje isso não seria possível com muitos deles), sobrecarregariam enormemente as redes elétricas.

Dia e noite, trens de dois quilômetros de comprimento com minérios, pesando mais de 40 milhões de quilos, partem de Christmas Creek para Port Hedland, ambas na Austrália. Do porto, um fluxo infinito de navios cargueiros (mais uma vez, queimando combustível pesado) navegam para a Ásia Oriental, onde o minério se transforma em aço em usinas movidas a carvão.

Aproximadamente 40% do ferro do mundo vêm da região australiana de Pilbara. Onde quer que você esteja, ao observar o que há ao seu redor, algo do que vê provavelmente vem de materiais extraídos em Christmas Creek ou nas redondezas.

Não seria um exagero chamar o proprietário da mina, Andrew Forrest, o mais otimista dos apoiadores do hidrogênio verde. Quando ele disse há dois anos que iria mudar o quanto antes as operações de mineração de sua empresa, a Fortescue Metals, para funcionarem totalmente com baterias elétricas, hidrogênio verde e amônia verde, um combustível derivado do hidrogênio, “riram da minha cara”, disse recentemente.

“Naquela época, havia um horizonte diferente e nítido de descrença de que o mundo poderia realmente mudar”, disse Forrest, que também é uma das pessoas mais ricas do mundo. Ele está convencido de que há um mercado, mesmo que outros vejam isso como loucura.

Tanto a Fortescue como a BP imaginam a si mesmas disputando pela liderança do hidrogênio verde e anunciaram planos para investir centenas de bilhões de dólares em projetos em dezenas de países além da Austrália, de Omã à Mauritânia, e do Brasil aos EUA. Isso ainda representaria apenas uma parte ínfima das centenas de milhões de toneladas que a Agência Internacional de Energia e outros dizem serem necessárias para criar um mercado no qual o hidrogênio verde seja barato o suficiente para que os fabricantes de aço e de concreto sejam convencidos a mudar suas operações.

Embora ambas as empresas sejam extremamente lucrativas, o governo da Austrália disponibilizou centenas de milhões de dólares por meio de subsídios e alocações de terras nos últimos dois anos, a maior parte na Austrália Ocidental, que tem seis vezes o tamanho da Califórnia, mas apenas dois milhões de habitantes.

“O diesel teve 120 anos para se tornar abundante e acessível”, disse Jim Herring, que supervisiona o desenvolvimento da indústria verde da Fortescue. “Queremos aumentar a oferta de hidrogênio em um décimo desse tempo. É um desafio monstruoso, sinceramente.”

O problema do ‘zero absoluto’

Para liquefazer o hidrogênio e conseguir transportá-lo, ele precisa ser resfriado a – 252,87 °C, pouco abaixo do zero absoluto, a temperatura teórica na qual os átomos ficam completamente estáticos. O hidrogênio também é bastante inflamável, dificultando o armazenamento.

Esses são apenas dois dos inúmeros obstáculos.

Algumas dúvidas vêm dos próprios defensores do hidrogênio. “A economia do transporte marítimo não parece boa”, disse Alan Finkel, o arquiteto dos subsídios australianos para o hidrogênio. “Acho que fui ingênuo no passado ao ver a exportação como o principal motor da demanda”, afirmou em uma entrevista recente. Em vez disso, “há muito sentido em ‘usá-lo onde é fabricado’, e a Austrália está realmente preparada de forma perfeita para isso”, disse.

Alguns são ainda mais céticos.

Saul Griffith, um inventor de destaque no setor de energia renovável que começou sua carreira em uma siderúrgica australiana, não vê um papel relevante para o hidrogênio verde. Para substituir os combustíveis fósseis, segundo ele, “a eletricidade usada para produzi-lo teria que ser ridiculamente barata. E se você tem isso, por que usá-la para fazer hidrogênio?”.

Griffith acredita que o hidrogênio verde “não é o combustível que vai salvar o mundo”. Para ele e outros, é melhor gastar o dinheiro com a redução dos custos da eletricidade renovável para que quase tudo possa ser eletrificado.

Forrest diz que simplesmente falta aos céticos conhecimento científico. A Fortescue, disse ele, misturará hidrogênio com dióxido de carbono, para que seja semelhante em consistência ao gás natural liquefeito e possa ser transportado nos mesmos navios-tanque.

“É tão simples quanto parece”, afirmou.

Forrest disse acreditar que, até o fim da década, faria seus acionistas economizarem pelo menos US$ 1 bilhão por ano ao converter as operações de mineração para hidrogênio verde, e que sua empresa acabaria produzindo hidrogênio em dezenas de lugares pelo mundo. A BP também afirma que exportará grandes quantidades de hidrogênio verde e amônia verde até lá.

O interesse adquirido das empresas de petróleo e gás pelo hidrogênio preocupa alguns ativistas do clima. Embora a BP, por exemplo, tenha apresentado o hidrogênio verde como parte de sua mudança em direção a uma energia menos poluente, este ano, a empresa reduziu os planos para diminuir gradualmente a produção de petróleo e gás nas próximas décadas, em meio a lucros recordes em toda a indústria.

As empresas do setor de energia já produzem a maior parte do combustível de hidrogênio do mundo, mas fazem isso a partir do gás natural, que é, naturalmente, um combustível fóssil. Algumas delas, inclusive a BP, talvez recebam subsídios federais nos EUA porque planejam capturar o carbono e armazená-lo em vez de liberá-lo.

Esse processo dá origem ao que é conhecido como “hidrogênio azul”, e alguns críticos consideram isso uma brecha na legislação de Biden que incentiva a produção de combustíveis fósseis.

Anja-Isabel disse que se opor ao hidrogênio azul equivale a deixar o perfeito ser inimigo do bom. “Isso não faz qualquer sentido”, afirmou. “No fim das contas, tudo se resume ao fator de emissão.”

Mas, pelo menos na Austrália, os investimentos da BP no hidrogênio verde estão avançando.

Um dos impedimentos para projetos gigantescos de hidrogênio verde é a oferta escassa de eletrolisadores, as máquinas que usam eletricidade para separar moléculas de água, isolando o hidrogênio.

Um problema é que a China, responsável pela produção da maior parte dos painéis solares, turbinas eólicas e tecnologia de energia renovável do mundo, não abraçou a produção de eletrolisadores. Analistas dizem que foi uma escolha calculada, pois o país investe pesadamente em carvão, e grande parte disso está atrelado à produção de aço e cimento.

“Isso ainda é uma questão: a China vai apostar todas as fichas no hidrogênio?”, disse Marina Domingues, analista de tecnologia limpa da Rystad Energy.

Apesar dos desafios, dezenas de países estão apostando no hidrogênio verde. No ano passado, Espanha, Portugal e França concordaram em construir um gasoduto submarino de hidrogênio até 2030, que mais cedo ou mais tarde abasteceria o restante da Europa. Japão, Taiwan e Cingapura, que importam quase toda a sua energia, também disseram que o hidrogênio será fundamental para se tornarem economias neutras em carbono.

E a Fortescue, por sua parte, está entrando no mercado de produção de eletrolisadores. Ela vai abrir este mês, na Austrália, sua primeira fábrica, a maior do mundo.

O ‘champanhe’ da energia

Para a Fortescue, o cálculo é simples. Todos os anos, cada uma de suas minas em Pilbara se expande pelo menos alguns quilômetros. Enquanto a empresa está desenvolvendo baterias de 15 toneladas para substituir os motores a diesel em alguns de seus caminhões que transportam minério, a mina de Christmas Creek, por exemplo, já se expandiu demais para depender completamente das baterias: os novos veículos movidos a bateria simplesmente não vão ter alcance suficiente para os pontos mais distantes da mina.

A Fortescue espera que 70% de sua frota funcione com baterias daqui a uma década – algumas abastecidas por um carregador móvel de 40 toneladas acoplado a um veículo semelhante a um tanque militar. Mas o restante funcionaria com hidrogênio e amônia verdes, substituindo os bilhões de litros de diesel usados pela Fortescue anualmente.

A BP está adotando uma estratégia mais comedida. Muitos de seus projetos globais têm como objetivo produzir hidrogênio azul, que é, por enquanto, mais barato. Seus projetos de hidrogênio verde na Austrália, inclusive a refinaria reaproveitada nas proximidades de Perth, vão entrar em operação gradualmente ao longo de uma década ou mais.

No entanto, a BP também vê uma mudança inevitável em direção ao hidrogênio verde motivada por regulamentações cada vez mais rigorosas nos EUA, na União Europeia, no Japão e na Coreia do Sul.

Em um “cenário acelerado’ que antecipa mais metas ambiciosas de redução de emissões definidas pelas nações do mundo, a BP prevê que, até 2050, o hidrogênio verde e azul serão os combustíveis predominantes na produção de aço naqueles países e também serão responsáveis por entre 10% e 30% do combustível de aviação e por entre 30% e 55% no transporte marítimo.

Para Anja-Isabel, “o hidrogênio é o champanhe da transição energética”.

Max Bearak cobre a geopolítica das mudanças climáticas. Ele já foi correspondente na Índia, no Quênia e na Ucrânia e fez reportagens em mais de 30 países. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Estadão Conteúdo

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