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Negociadores acusam presidência da COP26 de tentar reescrever Acordo de Paris

A urgência climática tem pautado o tom de discursos políticos que argumentam que a COP26 poderia ser mais importante que o Acordo de Paris

FolhaPress

11/11/2021 21h25

Atualizada 12/11/2021 6h16

Foto: AFP

Ana Carolina Amaral
GLASGOW, ESCÓCIA

Nos corredores da COP26, diplomatas têm criticado a condução do Reino Unido na presidência da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, por privilegiar a negociação de questões que não estão na regulamentação do Acordo de Paris. Essa atitude, avaliam, prioriza a busca de um resultado político que marque o evento.

O objetivo da presidência britânica, segundo os críticos, seria criar manchetes positivas para a COP26 na mídia global, dando uma sinalização de sucesso e cavando protagonismo britânico para a pauta climática –que tem no Acordo de Paris a sua maior conquista internacional.

A urgência climática tem pautado o tom de discursos políticos que argumentam que a COP26 poderia ser mais importante que o Acordo de Paris. Assinado em 2015, ele já foi ratificado como lei por 193 países. A reportagem apurou que a tensão deixada pelo brexit tem impactado a relação da presidência britânica com os europeus. A União Europeia (UE) já protagonizou a discussão sobre financiamento climático em edições anteriores da conferência –especialmente diante da ausência americana nos anos de governo Trump. Na COP26, no entanto, o bloco mantém silêncio sobre o possível aumento dos recursos para ações climáticas.

A percepção dos negociadores é que os britânicos –que pertenciam à União Europeia quando o Acordo de Paris foi assinado– agora buscam deixar a sua própria marca na negociação climática. A UE não estaria disposta a colaborar com o feito, que tem sido visto por diplomatas de diferentes blocos como uma tentativa de reescrever Paris.

“Precisamos provar aos países em desenvolvimento que nossos esforços em financiamento têm credibilidade. Não apenas a quantidade exata de dinheiro, mas a estrutura que providenciamos para isso”, afirmou o vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans.

No fim da tarde de quarta (10), foi publicada uma declaração conjunta dos Estados Unidos e da China reafirmando compromissos pelo clima. Ela foi interpretado nos corredores da conferência como um sinal político de que as duas nações estão dispostas a chegar a um acordo na COP26 e não querem ser apontadas como culpadas por um eventual fracasso.

A tensão política entre os dois países gerava o receio de que eles poderiam deixar de cooperar em Glasgow. A declaração, assim, busca indicar, segundo analistas da COP26, que a trava nas negociações não vem dos dois líderes do ranking de emissões globais de gases-estufa.

Questionado pelo jornal Folha de S.Paulo quanto ao impacto da declaração conjunta nas negociações, o enviado especial de clima dos EUA, John Kerry, disse que espera ajudar [a conclusão da COP]. “[Comunicamos] nosso trabalho conjunto para vencer esse desafio e cumprir o Acordo de Paris”, afirmou.

“É um sinal político muito poderoso. Está tendo um impacto nesta conferência, nos ajuda a chegar num acordo”, avaliou Timmermans. Embora não tenha trazido avanços significativos em itens pendentes da regulamentação do Acordo de Paris, o último esboço da decisão da COP26, publicado na quarta, propôs 71 artigos. O texto abarca as seções: ciência, adaptação, mitigação, financiamento, perdas e danos, implementação e colaboração.

A abrangência dos temas foi exemplificada por críticos através da comparação com o tamanho do texto do Acordo de Paris: ele tem apenas 29 artigos. “O texto de Glasgow tem de permitir agir e não adiar. A linguagem deve ser mais operacional e executiva e não intencional. Glasgow tem de implementar Paris e não querer substituir Paris”, avalia Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente.

Segundo especialistas em direito internacional que observam as negociações, a validade de decisões mais recentes se sobrepõe ao Acordo de Paris, desde que não elas não o contradigam. As críticas à presidência britânica se acumulam desde o final da semana passada, quando foi publicado o primeiro rascunho da decisão, na forma de lista de itens demandados pelas nações mais vulneráveis, países em desenvolvimento e também pelos protestos das ruas -ao longo da COP houve duas marchas em Glasgow, além de manifestações em diversas partes do mundo.

As novidades no texto foram recebidas com ânimo por observadores das negociações. Eles elogiam a disposição da presidência britânica de incorporar questões levantadas por cientistas e ativistas, como a necessidade de limitar o aquecimento em 1,5ºC (e não em 2ºC, como permite Paris), o reconhecimento da urgência, o encaminhamento de ações para adaptação climática e para perdas e danos.

“Foram ‘ticando’ caixinhas de várias coisas que as pessoas queriam ver: justiça climática, jovens, povos indígenas, oceanos. [O texto] reflete muita coisa que estava fora das salas de negociação”, destaca Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa.

“Nunca teve financiamento para adaptação e perdas e danos [em decisões anteriores], agora está incorporado”, afirma. “Mas o conteúdo não é suficiente, apenas duas vezes menciona a palavra ‘decide’, então vão ter que trabalhar para colocar algo mais concreto.”

Para Ana Toni, diretora do Instituto Clima e Sociedade, o texto é “muito vago”. “Não tem nada forte sobre financiamento, que é o grande impasse. Dá a sensação de enfraquecimento do tema multilateral. Uma negociação multilateral se dá a partir da confiança entre as partes”, afirma.

“Se chegam aqui querendo mais sem terem entregue o que foi acordado no passado -como os US$ 100 bilhões prometidos pelos países ricos em 2009 e que ainda não foram totalmente arrecadados- não se tem confiança”, completa.

Um negociador do bloco de economias emergentes classificou o trabalho da presidência como uma “lista de presentes do Papai Noel”, que, no entanto, deve ser esquecida pelos países antes do Natal. Mas a preocupação nos corredores da conferência é que o tom otimista não prospere, já que não há consenso suficiente entre os países para acompanhar as propostas do texto escrito pelos britânicos.

O receio dos países é que um resultado fraco na conferência abale a confiança no regime multilateral, após a geração de expectativas na mídia internacional sobre a importância da conferência -que ocorre menos de três meses após o IPCC (Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas) ter revelado que as emissões de gases-estufa precisam cair imediatamente.

Nos corredores da conferência, negociadores britânicos ouvidos pela reportagem defenderam a proposta de uma “decisão da COP26”, lembrando que as COPs anteriores também tiveram suas respectivas decisões e que o instrumento é necessário para garantir a aceleração da ambição das metas climáticas para mitigação, adaptação e financiamento. Também procurada, a assessoria de comunicação do Reino Unido afirma não comentar negociações em andamento.

*A jornalista viajou a convite do Instituto Clima e Sociedade.

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