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Indígenas amazônicos siekopai lutam para retornar a sua terra ancestral

Os siekopai estão espalhados atualmente em aldeias dos dois lados da fronteira entre Equador e Peru, afastados de seu modo de vida

Redação Jornal de Brasília

10/02/2023 15h27

Foto: Pedro PARDO / AFP

Eles se autodenominam “pessoas multicoloridas”, ou siekopai, devido às pinturas corporais e aos adornos que utilizavam em seu lar, no coração da Amazônia. Mas coroas de plumas e os colares de dente de animais são reservados agora para ocasiões especiais.

Deslocados por décadas de guerra e invasões comerciais e culturais, os siekopai estão espalhados atualmente em aldeias dos dois lados da fronteira entre Equador e Peru, afastados de seu modo de vida caçador-coletor e de seu território ancestral, que lutam para recuperar.

Hoje eles ganham a vida com trabalhos provisórios em cidades rurais cercadas por campos de petróleo, plantações de óleo de palma e rodovias de grande movimento. Seus filhos usam jeans, camisas e tênis, ouvem reggaeton e utilizam motos de fabricação chinesa. E, quando não estão na escola, em vez de aprender a pescar, caçar e a usar ervas medicinais, passam horas diante dos celulares como adolescentes de qualquer outra parte do mundo.

Próximos da extinção cultural, os líderes do povo siekopai afirmam que é uma questão de sobrevivência recuperar sua terra ancestral, que chamam de Pe’keya na língua paicoca e que permanece intacta, em boa parte, em uma área remota da Amazônia. 

“Nosso grande sonho é reconstruir nosso território, voltar a unir nossa nação, nossas famílias, nestes rios onde vivem os espíritos e as criaturas sobre as quais meu avô contava”, declarou à AFP um dos líderes comunitários dos siekopai no Equador, Justino Piaguaje, durante um recente e raro encontro em Pe’keya. 

Os siekopai são um dos 14 grupos indígenas reconhecidos no Equador, um país onde 7% da população se identifica como tal. No total, eles são apenas 1.200, que moram entre o Equador e o Peru. 

Durante conflitos na fronteira entre os dois países, que geraram confrontos armados em 1941, 1981 e 1995, intensos combates expulsaram os siekopai de Pe’keya, que segundo eles tinha quase três milhões de hectares ao longo do rio Lagartococha, que faz parte da fronteira entre Equador e Peru.

Do lado equatoriano, muitos deslocados acabaram 160 quilômetros ao oeste de sua terra natal, no assentamento rural de San Pablo de Kantesiya, uma localidade ribeirinha que subsiste principalmente de óleo de palma e petróleo.

“Desde a guerra, nunca conseguimos realmente retornar para o nosso território. Irmãos e famílias foram separados (…) e nossas raízes nutritivas foram cortadas”, disse Piaguaje.

“Tudo vem daqui”

Em janeiro, quase 200 siekopai de San Pablo e outras localidades se reuniram na aldeia de Mañoko, no lado peruano de Pe’keya, onde alguns indígenas moram em casas de madeira sobre palafitas, perto dos túmulos sagrados de seus venerados xamãs.

A viagem com barco a motor leva quase 12 horas de San Pablo a Mañoko, às margens do rio Lagartococha, “o rio dos jacarés” em paicoca.

Ao longo da viagem, sob um calor sufocante, peixes e répteis se movimentam nas águas escuras, invadidas por uma multidão de pássaros coloridos, em meio aos gritos dos macacos nas copas de árvores gigantescas.

Ao chegar a Mañoko, um pequeno povoado no meio da floresta, é possível captar alvoroço dos grandes eventos.

Os siekopai desembarcam e montam barracas entre as poucas residências. Depois, com tigelas na mão, formam uma fila diante da cozinha comunitária, onde são preparados, em um fogão a lenha, arroz, lentilhas e peixe fresco. Crianças descalças correm entre galinhas e poças. As mulheres lavam roupa no rio e penteiam os cabelos sentadas em canoas.

Nos dias seguintes, os siekopai se reúnem no campo de futebol rudimentar ou na única sala de aula da escola, vestidos para a ocasião com as coloridas túnicas tradicionais e cocares de penas, com colares de pérolas, sementes e dentes de animais.

Com pinturas à base de plantas, homens e mulheres decoraram seus rostos com motivos inspirados nos animais da selva: cobras, panteras e aranhas. Todos falam paicoca, mas também é possível ouvir espanhol.

“Este retorno a Pe’keya é para encontrarmos com nós mesmos. Para os siekopai, tudo vem daqui”, resumiu o líder da comunidade siekopai no Equador, Elías Piyahuaje, que tem um sobrenome comum na região, mas que registra uma variedade de grafias.

“As novas gerações não conhecem este lugar, sua história, a energia especial. Este encontro pretende fortalecer os laços entre velhos e jovens”, acrescentou Piyahuaje, com uma faixa brilhante de penas vermelhas e amarelas na testa.

Entre os que fizeram o passeio estavam adolescentes, como Milena, de 18 anos, que disse tviajado para “aprender sobre ervas medicinais e ouvir as histórias dos mais velhos”.

Orgulhosa de ser uma siekopai, mas cansada da “discriminação na escola”, ela declarou à AFP que gostaria de voltar à terra ancestral com sua família. “Estou feliz aqui, cercada pela minha família e pela minha comunidade. Estas são as minhas raízes”.  

Os jovens siekopai “vivem em uma realidade complexa: com um pé no mundo ocidental moderno e outro pé em seu território”, afirma Sophie Pinchetti, da Amazon Frontlines, uma ONG que apoia os povos da Amazônia e ajudou a organizar o reencontro de Manoko. 

O jogo de futebol diário, as crianças hipnotizadas com os desenhos animados nas telas de tablets e até mesmo um culto evangélico noturno barulhento, marcado por gritos de “Aleluia” no microfone, recordam o dilema persistente.

“Violação dos direitos”

Com o acordo de paz de 1998 entre Peru e Equador, os siekopai recuperaram a esperança de finalmente retornar a sua terra.

Em 2017, eles apresentaram uma demanda ao ministério do Meio Ambiente do Equador para obter o título de propriedade de parte dos 42.000 hectares de Pe’keya.

Desde então, “nós tivemos discussões com quatro ministros sucessivos, sem sucesso”, afirma Justino Piaguaje. Por isso, em setembro de 2021, “decidimos iniciar ações judiciais para que o Estado reconheça nosso território”.

A ação, ainda sem uma decisão, busca títulos de propriedade, um pedido de desculpas do Estado equatoriano pelas “violações dos direitos” dos siekopai e garantias para o retorno seguro à terra.

Mas existe um grande fator de complicação: Pe’keya fica no centro de uma vasta área de proteção no Equador, a Reserva de Produção da Fauna Cuyabeno (RPFC), criada em 1979 e com quase 600.000 hectares no nordeste da região amazônica do país.

A reserva é parte de um complexo ecossistema aquático, com centenas de rios, estuários e lagoas, classificado em 2017 como zona úmida de importância internacional pela Convenção de Ramsar, um tratado ambiental mundial estabelecido pela Unesco.

O local abriga mais de 200 espécies de répteis e anfíbios, 600 espécies de aves e 167 de mamíferos. Muitas são espécies ameaçadas, como o peixe-boi e o pirarucu, um dos maiores peixes de água doce do mundo. 

Em 2007, grupos indígenas assinaram um acordo com o governo do Equador que concedeu aos siekopai o direito de uso, mas não a posse, de 8.000 hectares da reserva em uma área que se sobrepõe com Pe’keya.

Membros dos grupos étnicos kichwa, shuar, cofan zabalo e siona receberam direitos sobre outras terras próximas.

Analistas afirmam que o governo e as empresas de petróleo e mineração alimentaram as rivalidades entre os grupos para frustrar suas reivindicações de terras e conseguir manter o acesso a áreas que contêm recursos naturais como o petróleo, que ainda pode ser encontrado na Amazônia.

“O Estado não quer nos proteger. Quer apenas explorar a riqueza de nossos territórios”, denunciou Justino Piaguaje. 

O governo do Equador não respondeu aos pedidos de comentários da AFP sobre o tema.

“Não podemos abandonar a luta”

O encontro de Mañoko apresentou um olhar sobre o passado e uma cultura em perigo. “Somos pessoas dos rios (…) da sabedoria das plantas e das lagoas”, disse Justino Piaguaje, que, como muitos siekopai, sonha em retornar à antiga vida de pesca, caça e agricultura itinerante.

Em Mañoko, os anciãos organizaram aulas informais para ensinar as técnicas tradicionais de pesca com o uso de ovos de formiga, frutas e sementes para a geração mais jovem.

Os jovens também aprenderam sobre a caça de jacarés, à noite e com arpão, uma tarefa perigosa porque estes répteis de um metro de comprimento atacam pequenas embarcações.

Os macacos também são uma fonte de carne, mas não são mais caçados com zarabatanas e dardos envenenados como antigamente, e sim com espingardas.

Os Ssekopai se orgulham de um conhecimento de “mais de mil” plantas, incluindo a “yagé”, utilizada em riutais xamânicos que criam uma ponte para o mundo espiritual.

“A Yagé é vital para nós. Se perdermos a yagé, perderemos nossa espiritualidade. Vamos cair na ignorância, perderemos a sabedoria dos anciãos. Não ouviremos mais os animais e os espíritos da floresta e dos rios” afirma Justino Piaguaje, cujo avô, atualmente com 109 anos, tomava a bebida feita com a planta.

O mesmo acontece com o tabaco, a outra grande planta que “protege os pescadores dos perigos da água, das jiboias, dos crocodilos (…) Este conhecimento, esta sabedoria das plantas só pode ser aprendida aqui, no nosso território”, resume.

Para reter o conhecimento, os siekopai insistem que devem retornar ao seu território.

“Não podemos abandonar a luta (…) ou os siekopai desaparecerão como alguns animais da floresta desapareceram da noite para o dia”, acrescenta Elias Piyahuaje.

© Agence France-Presse

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