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Mundo

Artistas indígenas retratam Brasil a partir de conflitos e plumas na Bienal de Veneza

Glicéria Tupinambá, Olinda Tupinambá e Ziel Karapotó preenchem ala do país com tensão, tradição e catástrofe

Redação Jornal de Brasília

20/04/2024 10h17

Imagem de ‘Okará Assojaba’ (2024), instalação de Glicéria Tupinambá. Rafa Jacinto/Divulgação/

SILAS MARTÍ
VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS)

Um menino na aldeia aponta a câmera para a lente que o enquadra, como se levantasse uma arma em sua defesa. E ali ele nos tem como alvo, os espectadores do filme. Esse breve momento da obra de Glicéria Tupinambá, uma entre os três artistas que ocupam o pavilhão brasileiro nesta Bienal de Veneza, sintetiza o que acontece aqui. Quem antes era olhado agora também olha, como sujeito –e também tem muita coisa a dizer, presa na garganta, de gritos de dor a gestos e palavras de força insuspeitada.

O garoto do filme, da mesma forma que outros jovens da aldeia, aprende a tecer redes de pesca, uma técnica que passa de geração em geração, a mesma que antes servia para tecer os vistosos mantos de plumas dos tupinambás.

No pavilhão, Glicéria montou uma grande rede envolvendo a projeção do filme, dois mantos que ela mesma costurou com a ajuda da família e estruturas vazias, os lugares para os mantos que ela chama de invisíveis. Nenhum dos mantos dos ancestrais sobreviveu no Brasil, e hoje há uma dezena deles em museus espalhados pela Europa. É como se a artista mostrasse aqui uma nova geração dessas peças para convocar quem vestiu aquelas que se foram.

Há um ano, Glicéria foi agente central na negociação que levou à devolução do manto tupinambá que estava havia mais de quatro séculos no Nationalmuseet, em Copenhague –neste ano, a peça deve enfim ser entregue ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, em processo de reconstrução depois do trágico incêndio de seis anos atrás.

Ela foge, no entanto, do calor das discussões acerca da repatriação de obras históricas que se perderam em processos de colonização, jogando outra luz sobre o debate. “Dizer que o manto foi roubado esconde a história”, ela diz.

“A presença desses mantos mostra que houve uma presença dos indígenas aqui na Europa. Onde estão esses corpos? Isso é que os mantos me dizem.”

Nesse sentido, o trabalho de Glicéria opera em dois planos. No espiritual, que se cruza com seu pensamento estético, a artista idealiza os mantos como âncoras de seu território, terras sempre em disputa. No plano terreno, da política, ela também expõe uma troca de correspondências com diretores de museus que guardam outros mantos em seus acervos, pedindo que eles possam ser mostrados aqui.

Se essa é uma luta na arena burocrática das negociações envolvendo o patrimônio histórico, Glicéria enfrentou outra mais sangrenta, a briga pela própria terra na Bahia –ela conta que chegou a ser presa por alguns meses num dos desdobramentos no processo de demarcação, que ainda não aconteceu. “A gente tem uma luta constante pelo território.”

Não é uma história só dela. “Já vi muita gente da minha família morrer nesse processo de luta pela terra”, diz Olinda Tupinambá, outra das artistas que representa o Brasil em Veneza –esta, aliás, é a primeira vez que o pavilhão do país é ocupado só por artistas indígenas, numa mostra organizada também por indígenas.

“Esse processo de colonização todo mundo viveu, mas essa hostilidade a gente ainda vive no Brasil. É barbárie mesmo, a gente está vivendo na extrema violência.”

Sua obra no pavilhão nacional, no entanto, encontra um caminho mais plácido. Toda pintada de urucum, a pele vermelhíssima, ela surge num filme como Kaapora, entidade batizada com os termos em tupi que significam mata bonita, e lê uma espécie de carta à humanidade, narrando atrocidades que acometem o meio ambiente e como nós, humanos, podemos fazer para evitar a catástrofe climática.

Essa é a trilha sonora de imagens de incêndios florestais, imensas zonas desmatadas, montanhas de plástico nos oceanos e outros desastres ecológicos, tudo mostrado num televisor em cima de um monte de terra, com mandiocas e batatas brotando e fios de sementes de urucum que invadem a galeria como tentáculos, ou veias e rios, na visão dela.

O trabalho se desdobrou numa performance, ao lado do colega de pavilhão Ziel Karapotó, na abertura para convidados da representação brasileira. “Meu trabalho tem isso de entender meu corpo como corpo político”, diz a artista.

“É representar a grande mãe terra.”

Sua instalação não deixa de ser uma obra arquitetônica também, em certo sentido, a construção do zero de um lugar que não existia para enquadrar o nosso mundo concreto, que existe em muitos graus de violência e ultraje, e falar com esse mundo a partir de um lugar de fala indígena.

“É como se a gente não pertencesse a lugar nenhum”, diz Olinda, expressando um sentimento que ecoa o tema da mostra principal deste ano em Veneza, a ideia de estrangeiros em todo lugar. “Falar de identidade indígena no Brasil é complexo.”

Tanto que o assunto se desdobra por toda esta Bienal de Veneza, para além do pavilhão brasileiro. Na mostra principal, organizada por Adriano Pedrosa, o coletivo Movimento dos Artistas Huni Kuin pintou toda a fachada do pavilhão central do evento. Do lado de dentro, uma sala mostra desenhos de Joseca Mokahesi Yanomami e André Taniki Yanomami, representando duas gerações de seu povo, junto das célebres fotografias de Claudia Andujar, que construiu sua obra documentando a luta dos yanomamis por suas terras.

Além deles, há trabalhos de povos originários de outras partes do planeta, como o Mataaho Collective, da Nova Zelândia, as paraguaias Juana Marta Rodas e Julia Isídrez, mãe e filha, os colombianos Abel Rodríguez e Aycoobo, pai e filho, os guatemaltecos André Curruchich e Rosa Elena Curruchich, entre outros.

Pavilhões de outros países, como os da Austrália, da Bolívia, da Dinamarca e dos Estados Unidos, também levaram obras de artistas indígenas a Veneza.

“Parece que a gente precisa ser violentado para conseguir acessar os nossos direitos no Estado brasileiro. É por isso que a gente vive nesse estado de violação”, diz Ziel Karapotó.

“Não existem fronteiras para os povos indígenas. Temos que morrer para as gerações futuras terem um território. Somos colocados para fora desse modelo, excluídos desse modelo.”

Essa ideia de viver como estrangeiro na própria terra também orientou a organização da representação oficial do país, a cargo de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana. É uma sensação que se traduz numa palavra e num novo batismo para o pavilhão nacional, não mais a casa do Brasil, mas hãhãwpuá, ou grande território, na língua do povo pataxó, um lugar onde está a nação de quase 300 povos originários distintos que dividem a extensão do nosso mapa com os herdeiros da colonização e outros migrantes.

“Dizer que somos estrangeiros em todo lugar não é uma metáfora para os povos indígenas”, diz Gustavo. “A sociedade nos coloca no lugar do invasor, do estrangeiro”, acrescenta Arissana. “A gente sempre esteve à margem. A gente é esse lugar que foi desmatado e depois se regenerou.”

Sua fala também resume a ideia da mostra. “Ka’a Pûera: Nós Somos Pássaros que Andam” remete tanto à técnica indígena de plantação de roças, a terra arrasada que se regenera, quanto ao pássaro que não voa e habita essas terras –são bichos que se camuflam para sobreviver.

“Nossas populações indígenas também vêm resistindo com estratégias de camuflagem”, diz Gustavo.

Mais explícito, ainda que não distante da estratégia de camuflagem, o trabalho de Ziel Karapotó encena a luta indígena no país em contato direto com a obra de Glicéria Tupinambá. Se ela usa as redes de pesca como instrumento de resgate da ancestralidade dos mantos de seu povo, ele recorre a elas como cenário de um embate.

Sua instalação opõe o que ele chama de cardumes, um de maracás, instrumentos musicais indígenas, e outro de balas de revólveres e metralhadoras. Pendurados em finos fios de náilon, eles flutuam diante de uma rede multicolorida. Dependendo da luz do pavilhão e do horário do dia, as cores da rede lembram as da bandeira do Brasil.

Ziel diz que não foi sua intenção e que o azul marinho e o amarelo ali simbolizam os rios e o céu da noite e o ouro envelhecido, a riqueza da terra e a luz das estrelas. Talvez seja um outro Brasil que grita nas entrelinhas dessas tramas, uma bandeira inspirada em outra feita por outro estrangeiro em todo lugar, o francês Jean Baptiste Debret, responsável por boa parte de uma fantasiosa iconografia que se construiu do Brasil para os europeus há dois séculos.

“Minhas produções denunciam e evidenciam as violações dos nossos direitos e corpos”, ele diz. “Mas também evidenciam a nossa força, não só do nosso modo de viver, mas nós como sujeitos com potência estética. Estamos aqui como autores.”

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