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Brasil

“Ele era simples, simpático e excelente ouvinte”, diz ex-aluna de Paulo Freire

A pedagoga narra que quis ser aluna de Paulo Freire, para ver se ele correspondia com o que dizia em seus livros

Redação Jornal de Brasília

19/09/2021 8h00

Foto: Divulgação / Instituto Paulo Freire

 Rebeca Torres
(Jornal de Brasília / Agência de Notícias UniCEUB)

A professora de pedagogia Maria Eleusa Montenegro, de 73 anos de idade, tem, entre as marcas de formação ter sido aluna de Paulo Freire nos programas de pós-graduação. Foi um professor especial Possui graduação em Habilitação em Orientação Educacional e Administrativa Escolar e Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás; e também Mestrado e Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas.

Com a voz embargada e olhos que brilham ao falar de seu antigo professor e patrono da educação brasileira, a professora Maria Eleusa fala um pouco de suas lembranças de quando foi aluna de Paulo Freire. Com muita emoção, a professora relembra de momentos especiais em sala de aula, “E acontece que os alunos ficavam contando amenidades de suas vidas, como: “Ah professor! Eu estou alfabetizando minha empregada com a sua metodologia…” E ele — Freire — ficava escutando naquela paciência.”

A pedagoga narra que quis ser aluna de Paulo Freire, para ver se ele correspondia com o que dizia em seus livros. Pois antes mesmo de o conhecer, Maria Eleusa era uma leitora ávida das obras de Paulo Freire. Com um conhecimento enciclopédico, uma dicção perfeita, com humildade e uma paciência infinita, Paulo Freire deixou sua marca na pedagoga. Não por trazer mudanças drásticas em seu pensamento, mas por reforçar para Maria Eleusa que ela se encontrava no caminho certo, seja trabalhando ou dando aula para seus alunos.

“ A pedagogia  freireana  aborda  a  docência  com  um  saber  crítico  e progressista; a importância da curiosidade   epistemológica; o reconhecimento da identidade cultural; a rigorosidade  metódica; o dever da reflexão; o reconhecimento de sermos condicionados; e o reconhecimento da ideologia na educação.”

Professora Maria Eleusa, a senhora pode falar um pouco sobre sua formação?

Maria Eleusa Montenegro: Então, eu fiz pedagogia. Na época em que eu estudava, a orientação educacional e a administração escolar, se chamavam especialização. Então eu fiz minha primeira pós graduação, que foi um curso de especialização. De forma resumida sou pedagoga; orientadora educacional; administradora escolar; pós-doutoranda em Educação pela UnB; professora aposentada pela UFG; e atualmente  professora de Pedagogia do UniCEUB.

 Mas foi no ano de 1985 eu fui para a Unicamp, em São Paulo, que tive meu contato com Paulo Freire.

Como teve o primeiro contato com as obras de Paulo Freire?

Maria Eleusa Montenegro: Tanto a educação como a psicologia da educação,e todas as ciências da educação antes do ano de 1980, eram dicotômicas. Você não tinha uma teoria que fosse interacionista. Ou você tinha uma teoria positivista ambientalista, que dizia “o meio influencia o homem”, ou tinha outras teorias humanistas que diziam que o homem é o senhor do seu destino, como é o caso de Rousseau e Carl Rogers nos Estados Unidos, que falava que o homem é capaz de saber o que é melhor para si, como é o próprio caso da psicanálise, que diz que a sexualidade, ou seja, a  personalidade do indivíduo está presente no homem desde que ele nasce.

E eu me sentia muito incomodada com isso, porque eu sempre achei que o homem determina o mundo, e o mundo determina o homem. Eu sempre imaginei uma teoria interacionista. Mas aí eu comecei a ver, não na psicologia mas na educação que já estavam saindo alguns livros que continham essa perspectiva interacionista.

E um deles era o Paulo Freire. E eu me encantei com ele e com suas teorias. Na época eu li praticamente todos os seus livros. Para mim, o ensino não deve ser uma coisa, como era no modo tradicional da época de jorrar tudo no aluno, mas ele deve ser uma troca. Claro que não é uma troca igual, mas ele deve ser uma troca. Então quando eu fui ser aluna do Paulo Freire eu já conhecia a maioria dos livros dele. 

Qual era, na ocasião, a obra preferida de Paulo Freire?

Olha, por incrível que pareça não foram as obras que atualmente são consideradas as mais importantes dele, que são A Pedagogia da Autonomia e A Pedagogia do Oprimido. Mas foi o livro chamado Extensão ou Comunicação? (que foi o preferido) e esse livro é muito interessante porque ele serve para qualquer pessoa. Então ele (Paulo Freire) diz assim, como é que deve ser o nosso relacionamento, ele deve ser como uma extensão ou ele deve ser como uma comunicação? Aí eu falei, achei né! O interacionismo.

Esse livro não foi feito exclusivamente para educadores. Antigamente tinha uma profissão que geralmente quem executava eram as mulheres e se chamava extensionismo¹. Então quando o agrônomo  ia para as fazendas, ele levava essa mulher extensionista, e enquanto ele ensinava aos outros homens a cuidar do gado e das terras, a mulher ia ensinar a dona da casa a organizar as vendas dos produtos. 

Esse livro então, foi feito em homenagem a essas mulheres extensionistas. Ele (Freire) escrevia assim: “você deve ensinar não jogando o conhecimento nas pessoas, mas comunicando.” E isso é uma premissa que eu tenho hoje na educação.

Por que a senhora quis ser aluna de Paulo Freire? Qual foi a sua impressão a respeito dele ?

Maria Eleusa Montenegro – Na época em que ele era professor, existiam umas opiniões que eu não considerava muito corretas do Paulo Freire. Eu fui ser aluna dele, pois eu queria ver se realmente ele condizia com aquelas críticas  que eu ouvia a respeito dele.

Quando eu fui ter aula com ele, eu me deparei com uma pessoa extremamente simples, simpática e um excelente ouvinte. Essa foi minha ideia inicial sobre ele. Então assim, eu fiquei encantada. Ele mandava a gente fazer trabalho como qualquer outro professor, ele não era uma pessoa prepotente, não se julgava alguém superior a ninguém.

Como o Paulo  Freire era na aula?

Maria Eleusa Montenegro – O professor Paulo Freire andava com um séquito de alunos e simpatizantes dele, um aluno carregava sua pasta e outro o seus livros, mas assim, na primeira aula eu vi que ele era um homem muito simples. E vi também, que, primeiro, ele ouvia o que os alunos queriam contar para ele. Os meus colegas e eu tinhamos uma certa impaciência. Porque nós queriamos ouvi-lo, não o contrário. 

E acontece que os alunos ficavam contando amenidades de suas vidas, como: “ Ah professor! Eu estou alfabetizando minha empregada com a sua metodologia…” E ele -Freire- ficava escutando naquela paciência. Somente quando ele acabava de ouvir aqueles alunos, aí sim ele começava a aula. E quando ele começava a aula, olha, aquilo sim jorrava tudo o que era ciência do que você pudesse imaginar. Eu tive uma amiga que não gostou muito da aula dele, mas assim, a maioria dos alunos da turma gostavam muito dele.

O homem era formado em direito, mas naquela época quem formava em direito era professor de linguística. Então, o português de Paulo era perfeito, a fala dele era perfeita. Se você fosse um taquígrafo, e copiasse o que ele estava dizendo, você poderia acabar a aula e já ir mandar imprimir um livro dele, dada a profundidade, a correção e propriedade das palavras que ele dizia. 

 O que a senhora acha do movimento Escola Nova?

O movimento chamado Escola Nova é um movimento que nasceu no início do século 20 . E eu nunca gostei desse movimento porque ele meio que deixava o conhecimento e os conteúdos em segundo plano. Em primeiro lugar, era o aluno saber resolver problemas, saber perguntar, era ele pesquisar e agir. Se você desse muito estímulo para o aluno, ele seria capaz de se desenvolver praticamente sozinho. E eu nunca fui a favor disso porque eu me sinto uma professora conteudista.

 Não digo que sou uma professora tradicional, já que o professor que é tradicional não ouvia aos alunos, não existia esse diálogo. Mas o professor tradicional ensinava muito e eu me sinto conteudista justamente porque eu ensino muito, mas sempre procuro fazer com que meus alunos perguntem, eu converso com eles e também pergunto para eles.

Como era acompanhar as aulas do Paulo Freire? Era difícil?

Maria Eleusa Montenegro – Paulo Freire foi um humanista marxista, humanista porque acreditava imensamente no homem. Ele tinha uma crença no homem e, assim, ele era um romântico e um cristão. Então, quando eu fui aluna do Paulo, eu falei ‘ Ai meu Deus do céu!’, se ele for como o movimento escola nova em relação ao conteúdo, ele não vai ser muito a favor do conteúdo não. Mas quando você vê o tanto de conteúdo que ele dava… 

Ele foi um profundo conhecedor de filosofia, de história da educação e da antropologia. Era uma coisa de outro mundo. O seu vocabulário e a sua fala eram extremamente recheadas de conteúdos filosóficos e científicos. Inclusive, para mim, foi um achado. A partir desse momento ele me conquistou, quando ele disse que:

 “O processo ensino-aprendizagem é como uma rua, geralmente as calçadas são menores que a rua. Então um dos lados da calçada era representado pelos alunos, quando era começado o processo de aprendizagem. A rua era o processo de aprendizagem. Já a outra calçada, era como ele -o aluno- chegava.”

Qual disciplina a senhora teve com ele?

Maria Eleusa Montenegro – Paulo Freire era um sonhador, humanista, cristão como eu já disse anteriormente, ele também era um utópico porque queria fazer tudo. E assim, era uma pessoa extremamente gentil, paciente e ouvinte. Então eu fiquei muito feliz de ser aluna dele. Tenho guardado até hoje um caderno com a primeira aula dele até hoje, a disciplina que ele dava se chamava “Educação Popular e Movimentos Sociais”. Eu fiz diversos apontamentos sobre a matéria. E nunca quis me desfazer dos meus cadernos de anotações.

Como era a aula do Paulo Freire? Como você e seus colegas se comportavam durante a aula?

Maria Eleusa Montenegro – Olha, enquanto tinha alguma pergunta, ele respondia. Tinha um intervalo entre uma aula e outra, então na hora que ele saia, aquele séquito de alunos saia junto com ele.  Já alguns dos  alunos ficavam na sala comentando sobre o que ele tinha ensinado. 

Eu nunca participei do séquito dele. Mas parece que eu precisei das aulas dele para saber que o Paulo Freire que eu lia, que eu estudava e fazia trabalho a respeito, era o Paulo Freire que eu iria encontrar lá, em sala. Tinham professores que chegavam em sala e não davam conteúdo, mas o Paulo Freire não, ele sempre deu aulas com conteúdos. Nós, alunos, copiavamos. Ele era um professor responsável, não faltava e que respeitava os alunos.

Qual o principal legado dele para a senhora?

Maria Eleusa Montenegro – Ele tem muitos legados, como o processo de alfabetização dele. E uma coisa muito importante, que eu gostei muito é sobre o processo de aprendizado de adultos e idosos. Então, ele tinha um período que ele chamava de conscientização, que era um processo  que o Paulo Freire fazia antes de iniciar o processo dele de alfabetização para essas pessoas.

Nesse período, que eu chamo de auto-estima, ele perguntava para as pessoas envolvidas “o que você sabe fazer?”, nisso a pessoa respondia o que ela sabia, e muitas vezes elas traziam desenhos ou objetos para demonstrar. E era nesse momento que Paulo afirmava que ‘todos nós temos valores e todos nós somos capazes’. Então enquanto ele não fazia esse processo de conscientização elevando a auto-estima das pessoas, ele não começava o processo de alfabetização. 

 Quais técnicas de ensino que a senhora aprendeu com o Paulo Freire  e que as utiliza hoje em dia?

Maria Eleusa Montenegro – Eu sempre tento trazer para sala algumas das premissas do Paulo Freire. No seu livro “Pedagogia da Autonomia”, ele fala muito que o professor tem que ser um profundo conhecedor. Diferentemente do que ocorre na Escola Nova, o Paulo Freire coloca o professor como superior. 

Coloca a importância do professor saber muito e transmitir muitos conhecimentos. Ele fala que é com esses conhecimentos que o aluno se tornará um ser de verdade. Pois antes do aluno passar por esse processo de aprendizagem e ensino, a consciência dele é ingênua. Ao criar essa consciência crítica, os alunos aprendem que existem razões científicas para as coisas.

Eu não me modifiquei com as aulas do Paulo Freire. O que aconteceu comigo nas aulas dele foi que eu percebi que estava no rumo certo. Atualmente sou professora do Mestrado de Arquitetura e Urbanismo do UniCeub. Dou aula de Docência Universitária, e eu tenho um dia de aula que é reservado às teorias do Paulo Freire.

Paulo, para mim, inegavelmente, é considerado o maior educador Brasileiro. No meu ponto de vista, acho que as pessoas que discordam disso, e o consideram menor por conta das críticas feitas a ele, não conheceram suas obras ou fizeram uma leitura errada sobre ele.²

No seu ponto de vista, Paulo Freire condizia com as críticas que eram feitas a ele?

Maria Eleusa Montenegro – Percebi que as críticas que ele sofria, de que ele dava pouco conhecimento aos alunos, não eram verdade.

E sobre o Paulo Freire ser um comunista, eu nunca ouvi ele falar em luta armada na sala de aula. O que eu ouvia muito ele falar era sobre a igualdade social, sobre justiça social, sobre igualdade de oportunidades. Ele defendia que o pobre tinha o direito a ter uma educação e moradia.

Eu acredito, na minha opinião, que o Paulo não foi um comunista, ele estudou muito o Marx, mas para mim, na realidade ele era um socialista. Queria que as igualdades e os bens fossem divididos para todos. Na minha experiência, o Paulo nunca incentivou nenhum de nós -alunos- a fazer passeatas ou protestos.

Ele era humanista e marxista, como eu já disse, e por isso ele ainda é muito criticado,  já que  a teoria marxista tem uma proposta de achar uma igualdade social econômica. Só que com isso nasceu o movimento de esquerda, mas eu acho que esse movimento de esquerda foi sendo deturpado ao longo da história. 

O que a senhora mais guarda de Paulo Freire?

Maria Eleusa Montenegro – Eu quero dizer que essa leitura minha do Paulo Freire é muito pessoal. Eu acredito que tenho condições de fazer essa leitura porque através da educação, através da psicologia eu fui vendo que ele tinha um caminho que correspondia mais à realidade.

Com relação ao Paulo Freire ser ou não um comunista, eu não percebia nos livros dele nenhuma incitação à revolta Mas eu via um trabalho muito grande pela igualdade social. Quero dizer que eu não sou a dona da verdade nem uma profunda entendedora de política mas, pelo o que eu vivenciei , pelo que eu li do Paulo Freire, posso afirmar que ele era um cara que lutava pela justiça e pela igualdade dos direitos, e não por uma revolução.

E mais uma vez, sendo aluna do Paulo, eu tive o prazer de ver que estava na linha certa e de achar que eu também estava pensando sobre Paulo Freire de uma maneira que eu pensava antes, de o conhecer, da época em que eu só o conhecia pelos livros. Ele não me decepcionou em nada durante o período das aulas que eu tive com ele. O próprio Paulo era uma enciclopédia ambulante.

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