Menu
Brasil

Assexualidade: “a maioria das pessoas nem sabe que existe”

Os assexuais, ou apenas “ace”, representam a letra ‘A’ da sigla LGBTQIA+, assim como os arromânticos

Redação Jornal de Brasília

01/03/2023 21h05

Arte: Nathália Guimarães

Nathália Guimarães
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

“Sabe quando parece que o mundo se abre quando você descobre algo novo? E o que eu tinha não era só esquisitice ou culpa minha?” Foi assim que Karina* se sentiu, aos 15 anos, em 2013, quando conheceu o termo assexual navegando no Tumblr.

Os assexuais, ou apenas “ace”, representam a letra ‘A’ da sigla LGBTQIA+, assim como os arromânticos. Assexuais são pessoas que podem não sentir atração sexual, sentem pouca atração ou só possuem atração depois que um vínculo emocional é formado com alguém, podendo demorar meses ou anos. A assexualidade é um termo guarda-chuva, ou seja, engloba outros grupos como demissexuais, entre outros.

Por isso, muitos assexuais escutam coisas como ‘você sofreu algum abuso sexual?’ ou ‘será que você tem algum distúrbio?’, mas a assexualidade não está ligada a nenhum desses fatores. De acordo com a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a nomenclatura abriga uma orientação específica. “Os assexuais são pessoas que não têm uma sexualidade orientada nem para hétero, nem para homo, nem para bissexualidade. Não sentem atração sexual e vivem muito bem assim”.

E se você já viu alguém com uma bandeirinha roxa, provavelmente essa pessoa se identifica como assexual, já que o roxo é a cor que caracteriza a comunidade. A bandeira clássica é dividida em listras, na qual a primeira é preta e significa assexualidade estrita, ou seja, pessoas que nunca sentem atração sexual. A segunda, representa a área cinza entre o sexual e assexual, que enquadra, por exemplo, os demissexuais.

A terceira listra é uma faixa branca, que constitui os parceiros não-assexuais. Por último, temos a listra roxa, que representa a própria assexualidade. A bandeira assexual foi abraçada pela comunidade em 2011, quando sua presença foi registrada pela primeira vez em paradas LGBTQIA+ no mundo todo.

No primeiro contato de Karina com a comunidade ace, ela diz que se identificou como demissexual, ou seja, pessoas que só sentem atração sexual após desenvolver um forte vínculo emocional com outra pessoa. “Para quem está se descobrindo, é um jeito mais fácil porque você se sente menos ‘quebrado’. É pensar ‘eu tenho jeito, eu vou sentir isso que todos sentem, só não apareceu a pessoa certa para mim ainda’”, explica.

Apesar de ter conhecido a comunidade na adolescência, ela lembra que já na infância pensava diferente do que era esperado dentro da sociedade heteronormativa. “Quando eu brincava de casinha, eu sempre já era casada e com filhos. A história girava em torno disso. Nunca era sobre conhecer alguém, casar e ter toda aquela fantasia de amor perfeito. Nunca planejei como seria meu casamento no futuro, como todas as menininhas fazem”.

Desde criança, as pressões surgiam. “Quando eu tinha uns oito ou nove anos de idade, no ano novo, um primo mais velho falou pra me irritar ‘é, você está crescendo. Ano que vem já vai arranjar um namoradinho’. Eu fiquei tão desesperada com aquela ideia, que quando vi a primeira estrela no céu desejei não namorar ninguém”, lembra. Isso porque Karina acreditava que não teria escolha sobre estar ou não em um relacionamento, seria algo inevitável.

Isso não quer dizer que pessoas da comunidade assexual não são capazes de namorar, casar e ter filhos. Karina afirma que antes de entender o que era ter um ‘namoradinho’, ela não fugia dessa forma. “É diferente de quando eu tinha seis anos e só gostava de passar um tempo com meu amiguinho brincando de massinha e monstrinhos. Eu perseguia ele igual a Pucca, então eu deveria querer namorar com ele”, fala enquanto dá risadas.

Vínculos

Karina diz que, durante o ensino médio, todos ao seu redor falavam em se relacionar com várias pessoas, e que ela até tinha interesse em conhecer alguns deles, mas nunca sentia vontade de beijar nem coisas do gênero. Ela queria se aproximar, conversar e criar um vínculo de carinho. “Quando eu estava na faculdade, as coisas não mudaram. Tinha um amigo que vivia tentando me arranjar alguém e me perguntou mais de uma vez, no meio das conversas, pra todo mundo ouvir, se na verdade eu não era lésbica. Um sem noção total”, lembra.

Em 2022, aos 26 anos, Karina afirma estar aberta para relacionamentos porque quer um “companheiro para a vida”, “ter uma pessoa” e “ser a pessoa de alguém”. Mas acha tudo muito complicado, já que estamos em um mundo que gira em torno de sexo.

Segundo ela, é por isso que muitos aces têm medo de se identificar. “Numa sociedade que valoriza tanto o aspecto heteronormativo e sexual, como você espera encontrar alguém que te aceite? Quando a nossa cultura de relacionamentos é tão baseada no físico e no sexual primeiro, e no relacionamento duradouro depois? Quando os meninos são criados para terem o desejo exacerbado e as meninas para se tornarem o mais desejadas possível?”, lamenta.

Quando questionei sobre a mesma pressão social dentro da família, Karina diz que, entre seus pais, sempre foi tranquilo e respeitoso. Mas isso não se estendeu para toda a família. Ela diz, com a fala entrecortada com gargalhadas, que uma das tias via seu jeito como o de uma pessoa reprimida, principalmente porque Karina estudava em uma escola adventista.

Sobre o sentimento de pertencimento, Karina diz que não se sente incluída na comunidade LGBTQIA+, nem no ‘mundo hétero’. “A maioria das pessoas nem sabe que isso existe, então nem tento me encaixar muito bem”.

“Muita gente fala que isso não existe”

Foi durante uma festa na Asa Sul, quando tinha entre 17 e 18 anos, que Luana, estudante de ciências sociais, decidiu viver a experiência de beijar homens que não conhecia. “Eu achei que foi muito esquisito porque eu não conseguia sentir nada enquanto estava beijando eles. Tipo, nenhuma emoção, nenhuma. Achei bizarro”.

Ela se lembra que decidiu experimentar esse tipo de relação após observar que as amigas faziam isso, e que elas até achavam Luana ‘meio maluca’ por se apaixonar antes de beijar alguém. Por conta disso, o rótulo dela era de ‘emocionada’.

Para se encaixar na sociedade, Luana continuou tentando manter relacionamentos casuais, apenas com o intuito de ficar com alguém, sem criar vínculos fortes. “Eu me sentia usada. Parecia que não fazia sentido eu estar tendo relações sexuais com uma pessoa que eu não tinha intimidade nenhuma”. Foi então que ela percebeu que não gostava desse tipo de relação e que precisava criar um vínculo antes de dar o próximo passo.

“Eu me aceitei como uma pessoa que gosta de criar vínculos, mas, até então, eu não sabia que isso era demissexual. Depois que eu conheci o termo, percebi que eu me encaixava”, explica Luana.

Ela afirma que o primeiro contato com o termo aconteceu por meio das redes sociais, que é principalmente onde as pessoas falam sobre. “Muita gente fala que isso não existe, que agora querem rotular tudo e etc. Se eu vou chegar, por exemplo, no meu namorado, que é jovem, tem minha idade, se eu chegar falando isso para ele, tipo, eu sou demissexual, ele vai achar que eu tô inventando, entendeu? Acho que a demissexualidade em si é uma pauta bastante invalidada, essa bandeira ainda é muito pouco assumida e valorizada”.

Apesar de ser o local que mais fala sobre a assexualidade e demissexualidade, a internet também é onde fazem piadas recorrentes, incitam a violência e invalidam essas orientações sexuais.

Segundo o estudo da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan), criado com apoio da Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF), 3,7% das vítimas da comunidade LGBTQIA+ que registraram boletins de ocorrência na Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) declaram pertencer à comunidade assexual.

“É um assunto supercomplexo porque você coloca todo mundo numa caixinha só. No fim eu entendo um pouco não aceitarem demissexualidade como LGBTQIA+, acho que tem que ser mais estudado”, diz Luana.

Mito ou verdade sobre sexualidade?

Em entrevista para o Esquina, a psicóloga Jaimara Falcão explica que estamos inseridos em uma sociedade hiperssexualizada, onde o estímulo pelo desejo e apetite sexual estão cada vez mais presentes na vida das pessoas. “É muito forte. Com isso, o indivíduo passa a viver de acordo com o desejo do outro e tem a chance de perder sua própria identidade. Com isso, os prejuízos podem ser grandes, afetando relações afetivas”, informa.

Junto com isso, a psicóloga afirma que é necessário ignorar as pressões sociais e as crenças de que, por exemplo, para ser feliz, é preciso estar em um relacionamento para se realizar como pessoa. “O ideal é que fosse algo natural, respeitando a individualidade e o momento de cada um”.

Dentro da psicologia, só se considera um distúrbio a partir do momento em que isso causa um incômodo, insatisfação, ou um prejuízo social ou pessoal. Por isso, Jamaira afirma que a assexulidade não traz sofrimento. “O indivíduo se sente bem com a sua condição, o sexo não faz parte de sua vida e não é importante”.

Apesar de muitos mitos em volta da assexualidade, hoje, as pessoas têm falado cada vez mais sobre sexualidade. Obras como a telenovela “Travessia”, de Glória Perez, ou famosos que assumem fazer parte desse espectro sexual, por exemplo, a cantora Iza, colocam esse assunto na mídia, e consequentemente, na ‘boca do povo’.

“Até há uns anos atrás era praticamente proibido falar sobre sexo, orientação sexual, identidade de gênero, de alguma forma parecia algo errado, até mesmo considerado uma doença, o que é um absurdo”, alerta Jamaira. Em 2022, o assunto é cada vez mais comentado, e discutir e ensinar sobre essas diferenças é importante para desenvolvermos a consciência e o respeito.

“O caráter de uma pessoa não deve ser visto por uma identidade de gênero e sim pelo indivíduo que ele é. Cada pessoa tem sua importância e seu papel social. É muito importante mostrar nas escolas que existem pessoas, seres humanos independentes de seu gênero. Ensinar desde cedo auxilia na diminuição do preconceito, mostra que realmente todos somos iguais e merecemos respeito”, explica a psicóloga.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado