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20 anos após reforma psiquiátrica, especialistas explicam avanços da lei

No Brasil, esse é um passado que começou a ser superado no final dos anos 1980, depois da aprovação da Lei Antimanicomial

Redação Jornal de Brasília

06/04/2021 18h24

Foto: Ministério Público do DF/Divulgação

Por Mayariane Castro e Ana Luiza Duarte/Agência UniCEUB

Abusos, violências, torturas… unidades de saúde que seriam destinadas ao tratamento de pacientes psiquiátricos chegaram, em pleno século 20, a ficar conhecidas por ações contra a dignidade humana de pacientes. Quem já ouviu histórias de antigos manicômios, como o Hospital Colônia, em Barbacena (MG), ou o Hospital de Franco da Rocha (SP), sabe que  seus métodos de tratamento são inadmissíveis.

No Brasil, esse é um passado que começou a ser superado no final dos anos 1980 – quando novos serviços foram implementados – principalmente depois da aprovação da Lei Antimanicomial (10.216), que referendou e ampliou essas experiências de sucesso. A nova legislação instituiu uma reforma psiquiátrica que completa, nesta terça (6), 20 anos de existência.

28/03/2003. Crédito: Ministério Público do DF/Divulgação. Brasil. Brasília – DF. Populares na Clínica Planalto em Planaltina.

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Origens da Lei

A Lei Antimanicomial ficou em tramitação por quase 12 anos até ser sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Luciana Musse explica que esse processo levou como inspiração várias experiências  internacionais bem sucedidas de mudança no sistema de tratamento psiquiátrico. “A mais significativa foi a experiência italiana,nos hospitais psiquiátricos de Gorizia e Trieste, sob a liderança do médico Franco Basaglia” e que ficou conhecida como Psiquiatria Democrática.

Para a professora de direito Luciana Musse, a legislação representou fundamental avanço para o país e instituiu novos olhares e intervenções para os usuários do sistema de saúde. A lei tem como princípio a garantia dos direitos de pessoas com transtornos mentais e mudanças na estrutura e na gestão das políticas públicas em saúde mental e no tratamento biopsicossocial dessas pessoas.

A pesquisadora explica que a lei resguarda que os tratamentos sejam, prioritariamente, em equipamentos extra-hospitalares da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e não podem utilizar violência, coação e medo. O objetivo do tratamento é garantir a manutenção da pessoa no seu território ou sua reinserção na sociedade, se estiver institucionalizado.

Pacientes no hospital psiquiátrico Clínica Planalto, em Planaltina-DF. O local foi fechado em 2002 após denúncias de maus-tratos aos pacientes e com a ajuda da Lei Antimanicomial. Foto: Ministério Público do DF/Divulgação

É prevista internação involuntária com nova lei ?

Com a reforma psiquiátrica, a legislação estipulou medidas em relação à internação de pacientes, sendo elas: voluntária, involuntária e compulsória. Para ser considerada voluntária, o paciente deve declarar por escrito que a aceita, pois neste caso suas capacidades de escolha não são afetadas. 

A internação involuntária ocorre sem o consentimento do usuário e é feita em situações de emergência ou a pedido de um familiar ou um responsável legal. “Qualquer internação involuntária, aquela onde a pessoa não é internada por vontade própria, e todo registro de alta desse paciente deve ser informada ao Ministério Público Estadual ou do Distrito Federal em até 72 horas”, salienta. Ainda sobre internação psiquiátrica, esta só pode ser permitida quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes para o tratamento do paciente.

Para ser considerada compulsória, precisa ser determinada pela justiça. Ela é vista, nessa modalidade, como medida jurídica, uma sanção e não tratamento em saúde mental. 

Quem eram os “loucos” 

A professora de psicologia Tania Inessa explica que os hospitais psiquiátricos surgiram na virada do século 18 para o século 19 e que de início não era uma instituição médica. “Os ‘loucos’ estavam junto com outras parcelas da população consideradas, naquele momento histórico, indesejáveis, como deficientes físicos e mentais, prostitutas, homossexuais, mendigos. Essas pessoas eram retiradas das ruas com discurso de caridade que teriam cama e comida, mas elas estavam presas nesse espaço.”

Tania Inessa ainda explica que os hospitais psiquiátricos, propriamente ditos, surgiram quando um médico francês, Philippe Pinel, disse que os loucos não eram criminosos e não deviam estar presos nessa instituição. “Eles eram doentes e daí que surge a ideia de doença mental e que eles deveriam ser tratados. Então, eles foram retirados desse espaço e levados para o hospital psiquiátrico”. Philippe Pinel é considerado o pai da psiquiatria e é de seu nome que surgiu a expressão “pinel”, que significa pessoa “meio doida”.

A professora conta como o gesto histórico se tornou também humanitário, pois Philippe queria libertar os considerados loucos. “Ele não imaginaria que a instituição que ele tinha criado iria se tornar uma das instituições mais violentas da história, comparadas a experiência do nazismo, porque depois que o complexo fenômeno do sofrimento existencial que se constrói sempre nas nossas relações foi reduzido a uma ideia de doença mental, a consequência foi que essa pessoa deixou de ser considerada um sujeito de direito”.

Representações nas artes

Luciana Musse usa o filme Bicho de Sete Cabeças, lançado em 2000, como exemplo audiovisual do que ocorria dentro dos hospitais psiquiátricos e de quem era internado nesses espaços. O longa-metragem foi baseado no livro Canto dos Malditos, que conta os abusos sofridos por Austregésilo Carrano Bueno no período que foi internado em diversos hospitais psiquiátricos durante o começo de sua vida adulta. 

Confira o trailer do filme

Bueno, além de escritor, foi integrante do Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil. No filme, Neto, o personagem principal, é internado num manicômio por seu pai após ser pego fumando maconha e sofre com os tratamentos abusivos do local. Era comum que pessoas sem transtornos mentais fossem internadas pela família, sem direito de escolha sobre a internação. 

Foi experiência comum no país que pessoas que, por diferentes razões, não  se encaixassem em um padrão fossem enviadas às instituições psiquiátricas. Temos diferentes registros de situações como essas, por exemplo, no hospital psiquiátrico de Barbacena. 

Dentre essas pessoas, estavam inclusas prostitutas, homossexuais, moradores de rua, usuários de qualquer tipo de droga, juntamente com pessoas que de fato possuíam transtornos mentais.

“Se uma moça engravidava sem estar casada ou mesmo em razão de estupro, ela era enviada ao hospital psiquiátrico. Quando os homens queriam se livrar de suas esposas, eles alegavam que elas eram doidas e assim, eram enviadas também para essa instituição,” exemplifica Luciana Musse.

Outras práticas documentadas em livros-reportagem sobre o tema, como Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, também envolviam “estupros corretivos” em pacientes mulheres que entravam no local após as famílias alegarem que eram lésbicas, assim como o uso de choques na cabeça dos pacientes com a finalidade de alterar suas funções cerebrais.

Alternativas encontradas

Após as mudanças no contexto da política nacional de saúde mental, o tratamento foi gradativamente ampliado, constituindo-se em uma proposta de cuidado integral e multiprofissional. Atualmente, existem medidas alternativas de tratamento, como o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), residências terapêuticas e ações de saúde mental na atenção básica. Tania Inessa explica que essa série de serviços e programas partem do princípio de que a liberdade é terapêutica e de que o sujeito que está passando por uma crise precisa de cuidado 24 horas por dia.

Cuidar não é conter, não é aprisionar, cuidar é ofertar o que o sujeito precisa naquele momento. (Tania Inessa)

A professora Luciana Musse ainda enfatiza a importância da inclusão de outros campos da saúde nesse cenário de mudanças no tratamento psiquiátrico. “A busca por incluir outros profissionais da saúde e de outros campos, como o serviço social, é também um avanço trazido pela Reforma. São várias frentes e estratégias, como as já mencionadas, que, junto com o protagonismo da pessoa e seus familiares possibilitam que receba um cuidado digno em saúde mental, compatível com a individualidade de cada um.

Sobre o Caps após a nova lei

CAPS são pontos de atenção estratégicos da Rede de Atenção Psicossocial, que possuem caráter comunitário e são constituídos por uma equipe que atua na área de apoio e atendimento às pessoas em alguma situação de sofrimento ou transtorno mental, assim como aquelas que apresentam sofrimento decorrente do uso abusivo de álcool, crack ou outras substâncias.

A Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental), em carta, aponta que a luta da saúde mental é algo constante e que mesmo com a reforma, é preciso garantir que o cenário não volte a ser como antes. Por isso, torna-se ainda mais importante, no dia de hoje, comemorar os 20 anos da lei 10.216 e continuar exigindo sua plena implementação no território brasileiro, em especial considerando as atuais ameaças de desmonte de forma geral do SUS e, em especial, dos serviços de saúde mental.

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