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O sacrifício de dois irmãos para tratar aves feridas pelo cerol das pipas

Três homens, mais um veterinário que trabalha meio período, formam um grupo dedicado à reabilitação de aves chamado Wildlife Rescue

Redação Jornal de Brasília

19/02/2020 7h05

Em seu porão, abaixo das movimentadas e poeirentas ruas do povoado de Wazirabad, Índia, Mohmmad Saud se inclina sobre o corpo de um milhafre-preto ferido. Saud examina atentamente o pássaro na sua frente e abre lentamente suas asas com uma mão enluvada. Dois ossos, quatro tendões e dois músculos estão estraçalhados .

A pequena cabeça do pássaro pende frouxa e seus olhos estão enevoados. “É um caso perdido”. Ele põe a ave de volta numa caixa de papelão. Seu empregado, Salik Rehman, pega outra caixa e tira dela outro milhafre-preto. A asa direita do pássaro está envolta numa gaze suja de sangue e pus. Este também terá de ser sacrificado.

Mais 14 caixas estão em volta, cada uma com um milhafre-preto que Rehman, Saud e Nadeem Shehzad, irmão de Saud, trouxeram naquela manhã de hospitais veterinários de Nova Délhi. Os três homens, mais um veterinário que trabalha meio período, formam um grupo dedicado à reabilitação de aves chamado Wildlife Rescue, que trata de mais de duas mil aves de rapina por ano. Quase todas são milhafres-pretos, que estão por toda parte na cidade. O Rio Yamuna, que corre por Wazirabad, é tão tóxico que em alguns pontos não há mais vida aquática, mas bandos de milhafres buscam restos em suas margens enlameadas e cheias de lixo.

Saud e Shehzad sacrificam tudo pela Wildlife Rescue desde que fundaram a organização, 20 anos atrás. O objeto de sua dedicação é o milhafre-preto, uma ave que nem é muito apreciada, nem está ameaçada. “É uma espécie de senso de dever”, disse Shehzad. “Se nós não cuidarmos deles, ninguém cuidará.”

Em 1997, quando estavam no curso secundário, Shehzad e Saud encontraram um milhafre-preto enroscado em manja – cerol. Embora proibido, o cerol é muito usado por empinadores de pipa, um passatempo popular na Índia. Vidro moído colado às linhas de pipa permitem cortar as linhas de outras pipas em competições – o que também pode ser fatal. Todo ano, pelo menos uma dezena de pessoas morre quando pipas usando cerol caem e a linha linha corta suas gargantas. E o cerol é uma particular ameaça para as aves.

Voltando a 1997, os dois irmão levaram a ave ferida a um dos muitos hospitais veterinários mantidos por seguidores do jainismo, uma religião de poucos adeptos, mas muito influente na Índia. O hospital se recusou a tratar do milhafre-preto – é uma ave carnívora e os jainistas não tocam em carne.

Shehzad e Saud então começaram a tratar de aves por conta própria. Eles recolhem aves de rapina feridas do hospital veterinário da cidade e as levam para seu porão. Lá, os irmãos fazem curativos em feridas abertas, libertam aves do cerol e as alimentam com carne crua de búfalo.

Noventa por cento das aves que Saud e Shehzad recolhem têm as asas feridas por cerol. Cerca de metade morre de infecção ou gangrena. As aves tratadas vão para recuperação em três gaiolas de tela de arame no telhado da casa, onde estão dezenas de outras. Uma vez recuperadas, são libertadas.

Os dois dizem que trataram de 20 mil milhafres-pretos nesses 20 anos. Eles dedicam mais de 12 horas diárias às aves. Saud diz que dificilmente encontra tempo para brincar com o filho ou ajudá-lo na lição de casa. As despesas da organização – equipamento, remédios, transporte e 225 quilos de carne por mês – também pesam para os irmãos. Eles vêm financiando a operação com o lucro de uma fábrica de máquinas para venda de sabão líquido da família.

“Destruímos nossa vida familiar – nossas relações com amigos, parentes, nossas mulheres e até com nossos filhos de 2 e 4 anos”, disse Shehzad. Agora, quase sem dinheiro, os irmãos encaram a perspectiva de fechar a Wildlife Rescue. “Já fizemos mais do que podíamos”, dizem. E isso tratando de indesejadas aves de rapina feridas 12 horas por dia

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