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Cinema

Como Christiane Jatahy une teatro e cinema montando a peça ‘A Hora do Lobo’

Única brasileira a ganhar o Leão de Ouro, na Bienal de Veneza de 2022, Jatahy estava há cinco anos sem trabalhar no Brasil

Redação Jornal de Brasília

20/09/2023 10h43

Foto: Divulgação

Gustavo Zeitel
São Paulo – SP
(Folhapress)

Até onde a vista de Christiane Jatahy alcança, o palco se mostra infinito. Nele, a diretora e dramaturga, de 55 anos, confronta, há duas décadas, a linguagem teatral ao cinema. É também uma pesquisa sem fim, novidadeira, sendo o resultado mais recente a peça “A Hora do Lobo”, que estreia nesta sexta-feira (22), no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.

Única brasileira a ganhar o Leão de Ouro, na Bienal de Veneza de 2022, Jatahy estava há cinco anos sem trabalhar no Brasil. Ela conta que seu afastamento foi causado pelos tempos pandêmicos e pela falta de apoio do governo Jair Bolsonaro, do PL, que agora ela denuncia. Apresentada pela primeira vez no Festival de Avignon de 2021, “A Hora do Lobo” é a primeira parte da “Trilogia do Horror”, sobre a ascensão da extrema direita ao poder.

“As estruturas que permitiram a vitória de Bolsonaro ainda existem no Brasil”, afirma a diretora, numa entrevista por videoconferência, de seu apartamento em Paris, na França, onde mora há sete anos. “Sua derrota nas eleições de 2022 apenas mudou o debate. Devemos agora refletir como evitar a repetição do horror.”

Dirigindo nos principais palcos da Europa, Jatahy pensa o Brasil errando pelo mundo. Não à toa, ela diz agora estar radiante, arrumando as malas para passar uma temporada em São Paulo. Em “A Hora do Lobo”, a discussão política ocorre num debate com o filme “Dogville”, lançado em 2003 pelo cineasta dinamarquês Lars von Trier.

Com um elenco formado por atores de três países -cinco franceses, três suíços e dois brasileiros-, a peça, falada em francês com legendas em português, conta a história de Graça, interpretada por Julia Bernat, que foge do Brasil, em 2020, o ano de plena pandemia, para tentar uma vida melhor na cidade de Dogville. Chegando lá, os personagens, que são os mesmos do filme, refazem em tempo real a obra de Von Trier, evitando cometer os mesmos erros presentes no longa.

A criação do cineasta é centrada em Grace, papel de Nicole Kidman, que se refugia no lugarejo, para escapar da perseguição de criminosos. Pouco a pouco, os habitantes passam a explorar a estrangeira, num processo de desumanização típica dos regimes fascistas. Von Trier ambienta a obra na caixa preta do teatro épico, teoria criada pelo alemão Bertolt Brecht.

Incorporando elementos teatrais, ele subverte a arte cinematográfica. Ali está presente o narrador em terceira pessoa, indicando os acontecimentos do filme. Com a imagem em movimento, a chuva não chove de fato, sendo anunciada pela voz do próprio narrador. Em sua obra, Jatahy realiza o processo inverso. Ela assume estar no teatro, tentando se apropriar do cinema, em técnica e linguagem.

Tanto que a diretora insere no palco a figura do montador, interpretado por Paulo Camacho, que manipula as cenas na ilha de edição. Entre fios, holofotes e telões, o aparato técnico que condiciona a realização de um filme divide espaço com o cenário. Esse aparato industrial é o mesmo que determina a expressão artística moderna, o próprio cinema.

Por meio da técnica, a sétima arte se define pela reprodução, isto é, a repetição de um acontecimento. A trama da peça “A Hora do Lobo”-reproduzir o filme- se volta ao fundamento do cinema. Ao mesmo tempo, a ideia de reprodução também se aplica ao teor político da peça -evitar a volta do horror. Por extensão, Jatahy provoca um tensionamento de temporalidades. Se o teatro ocorre no agora, os acontecimentos do filme voltam aos personagens como fantasmas do passado.

Jatahy completa a “Trilogia do Horror” com “Antes que o Céu Caia”, uma reflexão sobre “Macbeth”, de William Shakespeare, e “A Queda do Céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, e “Depois do Silêncio”, inspirado no romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior. As peças ainda não têm data de estreia no Brasil.

“Os espectadores dessas obras se transformam em testemunhas de uma experiência”, afirma a artista. “É uma criação de uma terceira zona, além do cinema e do teatro, em que essas duas linguagens vão coexistir.”

Jatahy conta que o teatro salvou a sua vida. Nascida no Rio de Janeiro, ela sofreu, na primeira infância, com a ausência do pai. Sua mãe, que a teve quando tinha 16 anos, casou novamente, dando à menina uma nova família e a descoberta da arte.

Com as primas, Jatahy escrevia textos e os encenava em festas de aniversário. Formada em teatro, Jatahy se tornou professora e deu aulas no Parque Lage, com a companhia Teatro Aberto do Lage, a TAL. Em 1994, ela atuou como atriz em “Ay, Carmela!”, de José Sanchis Sinisterra.

Na época, ela se encantou pelo pensamento do dramaturgo espanhol, conhecido por unir o teatro a outras artes. Jatahy se tornou também amiga de Aderbal Freire-Filho, morto em agosto, que foi o diretor da peça. “Aderbal foi o mestre da dramaturgia”, ela diz. “Nada escapava ao processo meticuloso que ele conduzia em seus ensaios, porque ele era realmente um pesquisador muito profundo da encenação.”

Desde 2003, Jatahy lidera a companhia Vértice, trabalhando com o mesmo elenco. Em 2012, a peça “Júlia” se tornou um fenômeno de bilheteria no Rio de Janeiro, chamando a atenção de programadores estrangeiros.

Foi assim que a diretora despontou no cenário internacional. Atualmente, ela é artista associada do Schauspielhaus, de Zurique, na Suíça, e do Odéon, em Paris. Com isso, a artista consegue incentivos para continuar a sua pesquisa, estreando algumas obras nessas casas.

Em 2016, Jatahy foi condecorada pelo Ministério da Cultura da França como “chevalière de l’ordre des arts et lettres” pelo conjunto da obra. Três anos depois, apresentou “A Regra do Jogo”, inspirado no filme criado, em 1939, por Jean Renoir, com a Comédie-Française, uma das companhias de teatro mais importantes do mundo.

Uma de suas peças mais conhecidas data do início de sua carreira. “A Falta que nos Move”, de 2005, radicalizou o debate com o cinema, se tornando, seis anos depois, um filme. No momento, a artista se prepara para montar, no ano que vem, “Hamlet”, de Shakespeare, no próprio Odéon. Na nova versão, a diretora imagina o personagem-título como uma mulher.

Em paralelo, ela comemora o sucesso da ópera “Nabucco”, de Giuseppe Verdi, montada em junho, em Genebra. Mesmo com o reconhecimento na Europa, a artista ainda tem o Brasil como ideal. Aqui, seu trabalho encontra sentido. “Só que preciso ter as mesmas condições de continuidade do meu trabalho que encontro na Europa”, diz.

A HORA DO LOBO
– Quando 22/9 a 15/10; qua. a sáb às 20h; dom às 18h
– Onde Sesc Consolação – Dr. Vila Nova, 245 – São Paulo
– Preço R$ 50
– Classificação 16 anos
– Autoria Christiane Jatahy
– Elenco Azelyne Cartigny, Delphine Hecquet, Julia Bernat, Matthieu Sampeur, Paulo Camacho, Philippe Duclos, Valerio Scamuffa, Véronique Alain, Vincent Fontannaz, Viviane Pavillon
– Direção Christiane Jatahy

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