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Música

Disco ‘Clube da Esquina’ mudou arte de Milton Nascimento e abriu horizontes

Imortalizada no álbum lançado há 50 anos, a esquina dos mineiros era mais idílica do que geográfica, uma metáfora para os encontros que aconteceram

FolhaPress

26/10/2022 10h25

Foto: Marcos Hermes

Lucas Brêda
São Paulo – SP

Quando Milton Nascimento e Lô Borges compuseram a faixa que deu nome ao “Clube da Esquina”, um dos discos mais importantes da música brasileira, não havia esquina e, menos ainda, clube. “Os encontros eram mais em bares e festas nas casas de amigos. A esquina mesmo não era frequentada pelos artistas”, diz Lô.

Ele se refere ao cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte, incrustada no imaginário popular como espaço de criação daquelas músicas. Na verdade, era onde Lô, que morava na região, passava a adolescência jogando futebol de dia e tocando violão e bebendo com os amigos à noite.

Imortalizada no álbum lançado há 50 anos, a esquina dos mineiros era mais idílica do que geográfica, uma metáfora para os encontros que aconteceram tanto em Santa Tereza quanto nos bares do Centro ou na casa dos irmãos Borges, tanto na praia de Mar Azul quanto no estúdio da gravadora Odeon, no Rio de Janeiro. Da mesma forma, ninguém tinha carteirinha para integrar o tal clube, que era mais uma junção dos amigos talentosos de Bituca do que uma reunião organizada de artistas.

A letra de “Clube da Esquina”, lançada por Milton Nascimento dois anos antes do disco antológico, foi escrita por Márcio Borges, poeta e irmão mais velho de Lô, em homenagem à tal esquina. Márcio era parceiro de Milton desde que despertou nele a vontade de compor, anos antes, numa noite memorável em que eles assistiram repetidas vezes ao filme “Jules e Jim”.

Mas no fim dos anos 1960 era o Borges mais novo quem iniciava sua história com Milton. Lô se lembra de vê-lo pela primeira vez, na escadaria do Edifício Levy, onde morava. “Eu tinha dez anos. Ele, 20. Foi um encontro mágico, de duas almas”, diz. “Me deparei com um cara tocando violão e fazendo aquele falsete que ele consagrou uma década depois.”

Do falsete embrionário no Levy até as parcerias em “Clube da Esquina” e “Para Lennon e McCartney”, Milton já morava no Rio e era conhecido pela música “Travessia”, entre outras. Já Lô estudava para o vestibular, tinha uma banda cover de Beatles com Beto Guedes e usava psicodélicos.

Segundo ele, essas influências do que chamou de “juventude Woodstock”, de “paz e amor, muita música e maconha”, se refletem nas músicas de “Clube da Esquina”, assim como uma certa introspecção. “Quando eu tomava LSD, fazia uma viagem para dentro”, ele diz. “A rua era hostil.”

Era um momento opressivo da ditadura militar. “Era uma coisa comportamental, prendiam as pessoas porque tinham cabelo grande e supostamente fumavam maconha”, diz. Numa das situações, que eram recorrentes, Lô dormiu no Dops, o Departamento de Ordem Política e Social, e viu amigos serem torturados. “Assisti às pessoas tomando choque, tapa na cara, porrada.”

Após as primeiras colaborações, Milton decidiu que queria fazer um álbum duplo -no Brasil, só “Fa-tal”, de Gal Costa, tinha saído no formato- com Lô, então com 18 anos, e convenceu sua mãe a deixá-lo ir ao Rio. “Eu não era conhecido nem em BH, aí ele falou que ia lançar um disco duplo com um adolescente. A gravadora disse ‘o cara pirou’.”

Eles ficaram pingando de apartamento em apartamento, sempre “denunciados” por vizinhos pela aparência hippie e a cantoria constante. Só conseguiram alguma paz quando foram passar uma temporada numa praia chamada Mar Azul, no bairro de Piratininga, em Niterói, antes de entrar no estúdio.

Além da dupla que assina o álbum, viveram na casa Beto Guedes, levado por Lô como um companheiro de geração e de rock, e Élcio Romero, o Jacaré, primo de Bituca. Eram dias de banho de mar, futebol na areia, bebedeira, pesca de tainha e muito trabalho em composição, onde as músicas surgiram ou foram lapidadas.

Entre os bares de Belo Horizonte, outros “sócios do clube” desenvolviam suas letras, entre eles Fernando Brant e Márcio Borges, além das ideias musicais de Toninho Horta. Outro letrista, Ronaldo Bastos, além do músico Wagner Tiso -então no Som Imaginário, a banda que tocava Bituca-, ambos já morando no Rio, completavam o time. Todos eles visitaram a casa em Mar Azul.

“Eu ia toda semana com um ou outro do Som Imaginário”, diz Tiso. “Íamos ver as novidades, o que eles estavam compondo. A gente ficava batendo bola na praia. Num lugar bonito daqueles, ficar dentro de casa era só para quem ia compor mesmo.”

Pessoas pouco comunicativas, Lô e Milton passavam o dia em seus quartos, cada um com seu violão, e às vezes mostravam um ao outro o que estavam criando. Beto Guedes ficava zanzando por ali. “Foi quando chegou no estúdio que a coisa mudou toda”, diz o músico, que tocou em 20 das 21 faixas de “Clube da Esquina”.

Guedes e Lô inseriram na arte de Milton a fase psicodélica, mais madura, dos Beatles. Mas a estética única, de MPB com bossa nova, jazz fusion e rock progressivo, temperada pela letargia contemplativa mineira, a repressão da ditadura e a poesia onírica só foi se materializar no estúdio da Odeon, na avenida Rio Branco.

“Clube da Esquina” foi registrado praticamente ao vivo, numa mesa de dois canais -um para as vozes, outro para os instrumentos. Era Tiso quem organizava as gravações, tendo Milton como comandante, a voz final sobre o que entrava ou não no álbum.

As composições eram assinadas entre um dos letristas do “clube” em parceria com Bituca ou Lô. Por exemplo, “Cais”, “Cravo e Canela”, “Um Gosto de Sol” e “Nada Será Como Antes” eram de Milton com letra de Ronaldo Bastos, que escreveu as poesias de “O Trem Azul” e “Nuvem Cigana” para Lô. Márcio fez as letras de “Os Povos”, esta com melodia de Bituca, e “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo”, “Tudo Que Você Podia Ser”, “Estrelas” e “Trem de Doido” com o irmão.

A dupla que assinou o álbum levava as composições e o resto era concebido na hora de gravar. O ritmo era de uma ou duas músicas registradas por dia, tendo o Som Imaginário como banda base, Milton e Lô nos violões e Tiso nos pianos e órgãos.

Mas todo mundo participava, incluindo nomes como Nelson Ângelo e Tavito, entre outros. “Toninho Horta vinha com as harmonias dele, tocou baixo, guitarra e bateria em várias, assim como o Beto Guedes”, diz Tiso. “Alaíde Costa foi convidada um dia para cantar aquela música, ‘Me Deixa em Paz’. Naná Vasconcelos ia quase todo dia, ele e Robertinho [Silva, baterista] se revezaram na percussão, mas todo mundo tocou. No final, eu reunia as coisas e ia para a mixagem.”

Guedes fez uma gambiarra para botar sons de sino em “San Vicente”. “Achei um carrilhão lá, um tubo de alumínio, e falei ‘cara, vou inventar uma igreja aqui nesse barato’. Comecei a tocar fora do tempo, que é difícil para caramba. A ideia era fazer um sino, como se tivesse tocando lá longe.”

Apesar de não ter sido recebido imediatamente como um clássico, “Clube da Esquina” rendeu um segundo volume, em 1978, e só foi sendo mais reconhecido ao longo das décadas. Além de impulsionar as carreiras solo dos artistas envolvidos, para Milton, o álbum significou uma abertura nos horizontes de sua arte, um passo fundamental para que ele tornasse um dos grandes nomes da música brasileira, chegando aos 80 anos nesta quarta-feira (26).

Para Lô, que virou uma espécie de artista cult, sem o sucesso comercial do parceiro, a história toda ainda é meio inacreditável. “Ninguém dava bola para aquela esquina”, diz. “Nem eu dava bola. Jamais podia imaginar que o lugar que eu ficava sentado com meus amigos e batizamos de ‘Clube da Esquina’ ia virar um disco, uma coisa que falamos por 40, 50 ou 60 anos.”

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