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Literatura

Escrevendo a ausência – como curar o luto com a escrita terapêutica

Escritora e cientistas social, Lella disserta sobre como é possível lidar com o luto através das palavras

Redação Jornal de Brasília

19/06/2023 11h04

Foto: Reprodução

Por Lella Malta

A vida se torna uma morte lenta, um padecimento indizível. O lamento perpétuo de alguém que nada deseja, que pouco sente e que quase tudo negligencia.

Foi assim que descrevi a experiência do luto do personagem principal de um dos meus romances, o ‘Qual é o nome da vez?’. Matt é um viúvo carrancudo e solitário, sem sonhos, sem alegria, sem vida. Por trás da quase mudez e da cara fechada, o tal mocinho se esconde em uma rotina de bebida além da conta, recusa de ajuda profissional e constantes crises de pânico. Apresentar uma perda tão significativa sob a lente masculina, foi uma das experiências mais lancinantes do meu processo de escrita. Vivi, de mãos dadas com o meu personagem, cada resposta emocional ao fato de ver sua esposa inexistir prematuramente.

Se o pesar da ficção grita tamanho desalento, ainda não pode ser comparado ao luto da vida real: um processo natural que ocorre em reação a um rompimento brusco de vínculo e que a grande maioria dos indivíduos terá que lidar, mais cedo ou mais tarde, no decorrer da vida. Sem tempo de duração definido, ele pode se estender por anos e levar ao adoecimento físico e mental, caso não haja conscientização sobre a importância do acolhimento, da desconstrução da interdição do luto e de sua naturalização. Esquivar-se da tristeza como mecanismo de fuga não liberta e não cura.

Em tempos de pós-pandemia, o processo é ainda mais complexo e ganha força de fenômeno coletivo, afinal, a morte se fez cada vez mais próxima e escancarada em uma emergência sanitária global nos últimos tempos.

A escrita terapêutica, por sua vez, pode auxiliar o enlutado a vivenciar sua dor emocional e adaptar-se gradualmente em um novo contexto de vida de ausência do ente querido. É recurso democrático, simples, valioso e com inúmeros ganhos terapêuticos — seja na experiência de esvaziamento de sentido diante da morte, traumática por excelência, ou de aceitação e tentativas de reorganização da vivência. Não substitui o acompanhamento psicoterapêutico ou psiquiátrico, mas é mais uma ferramenta a ser inserida no cotidiano do enlutado a fim de acalentar o sofrimento diante da perda e equilibrar seu estado emocional.

Um dos exercícios mais recomendados nessa situação é o da escrita de uma carta para alguém que já se foi, registrando em um papel suas memórias, agradecimentos, desculpas e qualquer palavra que desejaria dizer para a pessoa amada que já não está presente. Outra possibilidade seria escrever uma carta diferente, agora apontando o que acredita que aquele alguém gostaria de falar para você hoje. Ele faria uma recomendação, daria uma orientação? Iniciar um diário também organiza a vivência traumática e elabora a perda invisível socialmente.

Por permitir a releitura, a escrita permite maior caráter reflexivo — quando comparada ao discurso falado —, é exercício de autoexpressão, autocuidado e autocompaixão. É verdade que o adepto da escrita terapêutica pode encontrar desconforto ao realizar os exercícios propostos, mas a prática tem poder de ressignificar experiências e traumas ao promover a transformação das emoções e sentimentos do cotidiano, inclusive toda a aflição derivada do luto.

As possibilidades das palavras se tornarem ponte para a (re)organização de sentimentos nessa fase tão dolorosa são infinitas. A escrita ressignifica experiências, alcança memórias, é canal de escuta atenta das dores que carregamos no peito. Ainda que essas dores sejam eternas.

Lella Malta

Cientista social, escritora, preparadora literária, educadora e terapeuta de escrita expressiva. Focada na saúde mental das mulheres, se dedica ao estudo da psicanálise e da psicologia positiva. Autora de ‘Qual é o nome da vez?’, ‘Você tem fama de quê?’ e ‘Prazer, Paniquenta: Desventuras Tragicômicas de Uma Ansiosa’.

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