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Literatura

‘A Maldição das Flores’ evoca união feminina com família de rendeiras

É nos trechos contemporâneos que a narração perde impulso e o vira-página tão fluido esbarra em diálogos inconvincentes e em alguns clichês

FolhaPress

16/11/2022 13h31

Foto: Reprodução

Gabriela Mayer

A “Maldição das Flores” é um romance que começa com força. A boa escolha de palavras inaugurais prende o leitor de início ao apresentar uma história envolta em segredos com uma narração elegante.

A família Flores reúne mulheres rendeiras. O ofício foi aprendido às escondidas, depois que “a prima de uma prima de outra prima de Vitorina” veio à pernambucana Bom Retiro para uma temporada e trouxe consigo a técnica ensinada por freiras europeias.

Ainda que obediente, seguindo à risca a orientação de não compartilhar o jeito de fazer, a moça não escapou do olhar curioso e intrometido de Vitorina. Tarde da noite, uma rendava no quarto fechado, silenciosa; a outra espiava do telhado alto, secreta.

A renda delicada ganhou adeptas também fora da família, conforme as mulheres espalhavam as tramas e os pontos. Há encanto na forma como a autora faz do rendado um construtor de laços, e há beleza quando os pontos ganham jeitos e nomes brasileiros, remetendo às paisagens da caatinga de altitude e aos eventos da natureza que merecem apreciação. Nas mãos das Flores, nascem o ponto riacho, o ponto orvalho, o ponto alvorecer.

As habilidades sofisticadas das mulheres da família não superam, no entanto, o impacto social da falta de homens no núcleo, o que dá a elas a fama de amaldiçoadas. É um mundo em que as mulheres não existem sozinhas. Mas na maldição está a abertura de perspectivas que amplia o significado da história.

Se a falta de homens é fracasso para a cidade, ele é trunfo para as mulheres que enxergam além das regras estabelecidas. É o caso da jovem Eugênia, obrigada a se casar com um desconhecido, homem mais velho que a estupra corriqueiramente sob o pretexto de exercer o direito que diz ter.

Eugênia é uma personagem interessante e forte, que também sabe rendar e que enxerga a unanimidade feminina na família amiga como autonomia e independência, nada de maldição.

É ela também quem extrapola a renda como ornamento e negócio e atribui aos pontos o status de linguagem. A jovem cria um código, estabelecendo correspondência entre pontos e letras, permitindo que num centro de mesa esteja uma mensagem inteira; que em uma gola esteja uma súplica.

No tecido rendado estão suas angústias e seus apelos desesperados por outra vida. Segredos à plena vista compartilhados com a narradora, Inês, uma legítima Flores.

Esse é o mérito do livro, a construção de uma imagem potente de uma tradição que atravessa gerações e fortalece mulheres. A força de se tecer mensagens ora sobre o passado, ora sobre o futuro que possam chegar àquelas que vêm depois.

É bonita essa renda de mulheres que costuram o que desejarem, inclusive a própria mortalha, como tia Firmina, que queria chegar ao paraíso com garbo. Mas essa presença contundente no conteúdo não se sustenta e perde energia na forma.

A obra tem uma narração alternada. Alguns capítulos são narrados por Inês, em primeira pessoa, da Bom Retiro do início do século 20. Outros são narrados em terceira pessoa, no Rio de Janeiro dos dias de hoje, onde vive Alice, uma descendente da família rendeira.

A moça ganha de presente o véu de renda passado de geração em geração, sempre sob os cuidados da mais jovem das Flores. E, apesar de ser uma militante feminista, a princípio esnoba suas predecessoras e despreza o valor da renda, até descobrir o que ela carrega.

É nos trechos contemporâneos que a narração perde impulso e o vira-página tão fluido que se constrói nos capítulos sobre o passado esbarra em diálogos inconvincentes e em alguns clichês. A força inicial acaba se diluindo, ainda que a beleza da história permaneça.

Alice, ao contrário de Eugênia, não é uma personagem que chama para perto na leitura. Protagonista da seção contemporânea do livro, ela repete estereótipos e não alcança profundidade.

A escritora Angélica Lopes tem uma presença consolidada na narrativa infantojuvenil, com ficções premiadas. Ecos da escrita para crianças e adolescentes ainda estão em “A Maldição das Flores”, seu primeiro romance adulto.

O livro evoca o imaginário da própria autora, que cresceu rodeada por histórias do vale do Pajeú, em Pernambuco, terra de seu avô. As vozes que ela costura neste romance histórico honram a memória das mulheres, apesar de perderem vigor ao longo do livro.

A MALDIÇÃO DAS FLORES
Preço: R$ 49,90 (256 págs.); R$ 34,90 (ebook)
Autor: Angélica Lopes
Editora Planeta

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