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Cinema

‘Noites de Paris’ evoca Rivette e nostalgia de uma França solidária

Amizade, solidariedade, amor ao cinema e à arte de narrar dão o tom de “Noites de Paris”

FolhaPress

20/10/2022 10h31

Foto: Reprodução

Lúcia Monteiro
São Paulo – SP

Em 1981, François Mitterand se elege presidente da França e um clima de otimismo e solidariedade se instala no país. Esse clima embala “Noites de Paris”, seja na trama, na textura da imagem e do som ou na relação afetiva que estabelece com lugares e memórias.

Uma sinopse do novo longa de Mikhaël Hers dirá que se trata da história de Élisabeth, mãe de dois adolescentes que, no início dos anos 1980, se separa do marido e se vê diante da necessidade de trabalhar pela primeira vez na vida.

Vivida por Charlotte Gainsbourg, a protagonista arruma um emprego como telefonista de um programa de rádio em que os ouvintes contam suas histórias de vida noite adentro. No estúdio, ela conhece Talulah, papel de Noée Abita, garota que erra pela cidade, sem ter onde morar. E a decide acolher.

Embora correto, esse resumo deixa de lado aspectos essenciais do filme, a começar pela importância da cidade na tela, sobretudo à noite.

De fato, Mikhaël Hers filma uma Paris nada óbvia, vista a partir do apartamento onde a família de Élisabeth vive, no 15º arrondissement. A partir dos anos 1970, torres de até cem metros de altura foram erguidas no bairro de Beaugrenelle, na margem esquerda do Sena, dentre as quais o hotel Nikko, com fachada de alumínio e janelas de contornos arredondados, num vermelho nada discreto.

Seu colorido marca a paisagem do filme, assim como a esplanada que une diversos conjuntos residenciais daquele pedaço, ornamentado pelo painel de azulejos desenhados pelo pintor Olivier Debré.
No filme, o espaço urbano funciona quase como personagem e ganha por vezes uma textura granulosa e espessa. Isso se deve à incorporação de trechos de filmes das décadas de 1970 e 1980, rodados em película e em vídeo.

Hers gravou majoritariamente em tecnologia digital, com exceção de algumas cenas em 16 milímetros, de modo que há uma visível diferença entre os suportes da imagem. Embora cause estranheza, a estratégia interpela diretamente a memória. À nostalgia de lugares, sons, roupas e objetos dos anos 1980 se soma a lembrança saudosa da imagem analógica e videográfica.

Dentre os materiais que “Noites de Paris” toma de empréstimo estão planos do documentário que Claire Denis e Serge Daney dedicam a Jacques Rivette, e o próprio cineasta é visto no metrô. Há também referências a “A Ponte do Norte”, de 1981, que Rivette ambienta justamente numa Paris que erguia grandes conjuntos habitacionais.

Mais do que homenagem, “A Ponte do Norte” talvez seja uma chave de compreensão para o longa de Mikhaël Hers. O filme de Rivette traz no elenco Pascale Ogier, coautora do roteiro, no papel de uma garota que, como a Talulah de Hers, tem uma existência errante pela capital francesa.

É notável a semelhança física entre Noée Abita, que vive Talulah, e Pascale Ogier. A cena em que Talulah e os filhos de Élisabeth veem no cinema “Noites de Lua Cheia”, de 1984, filme de Éric Rohmer protagonizado por Ogier, reforça o elo entre as épocas, atrizes e personagens, gesto explícito de cine-filiação. Ogier morreu em 1984, aos 25 anos.

Amizade, solidariedade, amor ao cinema e à arte de narrar dão o tom de “Noites de Paris”. Ao som de “Et si Tu n’Existais Pas”, hit de Joe Dassin, uma nostalgia difusa impera. A alegria da eleição de um presidente socialista é resgatada, num cenário político mais tolerante e solidário, terrível contraste com o peso que a extrema direita adquiriu recentemente na França, e não só.

NOITES DE PARIS
Avaliação: Muito bom
Produção: França, 2022
Direção: Mikhaël Hers
Com: Charlotte Gainsbourg, Quito Rayon Richter e Noée Abita
Classificação indicativa: 16 anos
Quando: Em cartaz nos cinemas

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