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Cinema

Jonathan Glazer mostra, em Cannes, família margarina indiferente ao Holocausto

O cineasta inglês Jonathan Glazer, dono de uma produção bissexta, resolveu romper um hiato de dez anos sem lançar longas

FolhaPress

19/05/2023 16h50

Foto: Divulgação

Guilherme Genestreti
Cannes – Franças

“The Zone of Interest”, um dos filmes mais aguardados da competição pela Palma de Ouro em Cannes, começa com cenas idílicas no campo, preenchidas pelo som de grilos. Há ali uma versão anos 1940 do que parece ser uma família de comercial de margarina, banhando-se no riacho perto de casa. O pai tem um caiaque, a mãe cultiva um imenso jardim, as crianças brincam com os cachorros ao ar livre e dormem ouvindo contos de fadas.

Aos poucos surgem a imagem de uma torre de sentinela aos fundos do quintal, e o barulho de tiros um tanto abafados enquanto a matriarca passa batom diante da penteadeira. Estamos nos arredores de Auschwitz, mas a rotina de quem vive do lado de fora das muralhas segue inabalada.

O cineasta inglês Jonathan Glazer, dono de uma produção bissexta, resolveu romper um hiato de dez anos sem lançar longas com um drama de época sobre o cinismo. A história, levemente inspirada no romance homônimo de Martin Amis, trata da família de um oficial nazista encarregado de comandar o campo de concentração da Polônia ocupada.

A atriz Sandra Hüller, de “Toni Erdmann”, interpreta Hedwig, a esposa que teme a mera possibilidade de seu marido militar ser deslocado para longe do idílio que ambos construíram ali, encostado nos muros externos do complexo de extermínio. Os horrores que se passam do lado de dentro não são mostrados na tela, mas se insinuam do lado de fora.

À certa altura, o patriarca, vivido por Christian Friedel, recebe uma comitiva de engenheiros que o apresentam à última tecnologia em câmara de crematório, como se falassem de uma simples máquina de lavar ou coisa mundana parecida. Sua mulher está encantada com o novo casaco de pele que ganhou, confiscado de alguma prisioneira. E a mãe dela fica a se perguntar, de forma um tanto prosaica, se sua antiga patroa, judia, estará em algum lugar dentro do campo de concentração.

Reside aí um dos aspectos principais do longa. Glazer não pretende fazer uma caricatura vilanesca da família do encarregado de Auschwitz. Prefere falar de como a indiferença das pessoas comuns é conivente com atrocidades históricas.

Não deixa de ser um tema que esquentou com a ascensão da extrema direita e que não era tão latente em 2013, ano de seu último longa-metragem -“Sob a Pele”, com Scarlett Johansson no papel de uma predadora de homens vinda de fora da Terra. Dessa obra anterior, o diretor manteve o tom meditativo, embalado por tomadas longas e uma trilha sonora que parece querer induzir o transe.

De alguma forma, “The Zone of Interest” é a antítese de “O Filho de Saul”, de László Nemes, para citar outro longa sobre o mesmo assunto e que sacudiu Cannes oito anos atrás. Se o diretor húngaro quis conduzir o espectador para dentro do morticínio, transformando a experiência de um judeu num campo de concentração num videogame em primeira pessoa, o britânico opta pela sugestão, igualmente aterradora. Nisso, está mais próximo de “A Fita Branca”, de Michael Haneke, que venceu a Palma de Ouro em 2009 com sua alegoria sobre o germe do nazismo em crianças alemãs.

A obra de Glazer mantém um diálogo curioso com outro título na programação do festival francês, o documentário “Occupied City”, de Steve McQueen, que voltou sua lente para os bairros da Amsterdã contemporânea e, com a câmera parada, se propõe a esmiuçar o que neles se sucedeu durante a ocupação alemã do país, durante a Segunda Guerra.

Enquanto filma bares, vitrines, calçadas e canais da cidade, vai empilhando casos de judeus que viveram ali, décadas atrás, e tiveram um desfecho mais ou menos parecido: os que não conseguiram fugir foram ceifados pelo morticínio em escala industrial do nazismo. Ao cruzar imagens dos espaços no tempo presente com uma narração de tragédias passadas, o diretor de “12 Anos de Escravidão” se propõe a fazer o mesmo expediente que Alain Resnais fez nos 1950 com “Noite e Nevoeiro”.

A diferença é que o francês precisou de apenas 33 minutos, enquanto McQueen demora quatro horas numa sucessão de relatos que, contados sempre sob a mesma forma monocórdica, levam o espectador à letargia, por mais trágicos que sejam os casos ali narrados.

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