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Cinema

Como ‘Ripley’, adaptação da Netflix, relê sucesso de Patricia Highsmith em série

Highsmith escreveu também “Strangers On a Train”, de 1950

Redação Jornal de Brasília

03/04/2024 17h58

Foto: Reprodução

ALESSANDRA MONTERASTELLI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Casinhas pictóricas em rochedos às margens do mediterrâneo são banhadas de uma decadência tipicamente napolitana, feita de paredes centenárias caindo aos pedaços e santas descascadas espalhadas por toda a parte. A beleza avassaladora da Costa Amalfitana, na Itália, é o cenário perfeito para os crimes de Tom Ripley.

O vilão metamorfo, criado em 1955 pela escritora Patricia Highsmith, falsifica assinaturas, finge ser quem não é e até mata para chegar onde quer, enganando todos a sua volta. Ripley se tornou um ícone atemporal da ficção americana, saindo dos livros para conquistar as telas múltiplas vezes -e, mais do que isso, foi um dois raros personagens LGBT a não ter seu arco premeditado pela homofobia, com condenações à amargura ou morte sem contexto.

“O Talentoso Senhor Ripley”, já deu vida a dois filmes, “O Sol por Testemunha”, com Alain Delon, e o longa homônimo que eternizou, em 1999, Matt Damon como Tom Ripley e Jude Law como Dickie.

Highsmith escreveu também “Strangers On a Train”, de 1950, levado às telonas por ninguém menos do que Alfred Hitchcock, com “Pacto Sinistro”, e “The Price of Salt”, publicado em 1952 sob pseudônimo. O livro foi pioneiro na literatura por narrar um romance entre duas mulheres com um final feliz, e virou o filme “Carol” pelas mãos de Todd Haynes, em 2015, estrelando Cate Blanchett e Rooney Mara como casa.

Agora, Tom Ripley é encarnado por Andrew Scott em uma adaptação da Netflix que, filmada quase toda em branco e preto, confere uma áurea noir à trama que combina com o charme do personagem e da costa italiana. A escolha do ator britânico acontece depois de seu sucesso como padre sensual em “Fleabag”, drama cômico de Phoebe Waller-Bridge, e de sua interpretação melancólica em “Todos Nós Desconhecidos”, romance gay que, ao lado do indicado ao Oscar “Vidas Passadas”, se dedicou a fazer uma reflexão dolorosa sobre as relações amorosas.

O Ripley de Scott é desajeitado no primeiro contato com Dickie, o playboy que vive na Itália às custas do pai. A trama, como no livro de Highsmith, começa quando o empresário o confunde com um amigo de Dickie e se propõe a bancar a sua viagem a Itália, para que ele convença o filho a voltar aos Estados Unidos.

Os passeios de barco, o quadro de Picasso na sala e a falta de noção dos amigos mimados de Dickie parecem despertar desprezo em Ripley, dando até certa comicidade à série Ao mesmo tempo, a riqueza e o prestígio social de Dickie é o que Ripley mais deseja -e está convencido a conquistar, custe o que custar.

“Eu não acho que ele é vilão ou psicopata, acho que ele não conseguiria ser apenas vilanesco por muito tempo. Não quero diagnosticar nenhum traço seu. Há algo nele que não é possível entender completamente” diz Andrew Scott, por videochamada. O ator se esforçou para evitar repetir atuações anteriores do personagem. “Se você entende quais são os pensamentos [de Tom Ripley], acho que é possível entender seus motivos, e então seus sentimentos.”

Mas, se Ripley quer ser ou substituir Dickie, ele é apaixonado por ele na mesma medida. Os sentimentos perturbados do protagonista espelham, de alguma forma, a vida da própria Patricia Highsmith, que experienciou a dura realidade de ser homossexual nas décadas de 1940 e 1950, quando ser lésbica era associado ao crime e a doença.

Ainda que não tenha sido perversa como sua criatura, Highsmith viveu mergulhada em controvérsias. Em seus diários, relatou relacionamentos com múltiplas amantes, geralmente conturbados e por vezes violentos. Se amava mulheres na cama, fora dela costumava estar na companhia de homens, e pessoas próximas relataram seu prazer em gerar desconforto social com comentários maliciosos. No fim da vida, ficou marcada pelo antissemitismo.

Assim como Tom Ripley, com quem dizia se identificar, Highsmith costumava se relacionar com mulheres ricas e, em seus diários, fantasiava constantemente, misturando realidade e ficção. Depois de uma infância difícil, desenvolveu depressão e alcoolismo na vida adulta, sentia ódio de tudo e todos, preferindo isolar-se com seus gatos e lesmas -bichos pelos quais era obcecada. Viveu a maior parte da vida na Europa, em rejeição ao sonho americano, e chegou a desenhar as paisagens italianas onde Ripley cometeria assassinatos apaixonados.

Sua biografia talvez ajude a explicar os personagens que almejam desesperadamente romper com as amarras sociais, às vezes, como no caso de Ripley, buscando a libertação pela desinibição de seus mais perversos desejos. Tampouco é estranho para pessoas LGBT precisarem fingir algo que não são, como a própria Highsmith fez no começo da carreira.

Se literatura e cinema são artes narrativas, suspenses carregados de emoções dramáticas, ambientados em lugares glamurosos e repletos de tensão sexual parecem ser uma fórmula certa do sucesso em ambos os formatos. E, apesar dos seus atos horríveis, Ripley sofre pelo amor não correspondido e pela rejeição da sociedade.

Contrariando uma história triste, porém, ele escolhe revidar as crueldades que lhe foram impostas de uma forma estranhamente charmosa, pronto para abocanhar o mundo de uma elite que tudo tem sem nada fazer -conquistando, assim, a torcida do público, o seu maior triunfo

RIPLEY
Quando A partir de 04/04
Disponível na Netflix
Onde EUA
Elenco Andrew Scott, Dakota Fanning e Johnny Flynn
Produção Steven Zaillian

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