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Cinema

‘Calígula’, censurado por ser ‘império da orgia’, e Rivette são redescobertos em Cannes

A apresentação fez parte da seleção Cannes Classics, que este ano conta ainda com exibições de “O Desprezo”

FolhaPress

19/05/2023 17h27

Foto: Reprodução

Henrique Artuni
Cannes – França

“O mais polêmico e audacioso filme de todos os tempos: ‘Calígula’, o império da orgia.” Era assim que um empostado narrador anunciava, na TV aberta, a exibição de um filme sobre Roma Antiga na madrugada –naturalmente, não pelo seu caráter educativo.

Tampouco foi por uma inocente paixão ao cinema que jornalistas e entusiastas lotaram a sessão desse mesmo filme no Festival de Cannes, nesta quarta-feira, na premiére da sua “cópia definitiva”, recheada de bacanais bizarros e com o ator Malcolm McDowell, de “Laranja Mecânica”, no papel-título.

A apresentação fez parte da seleção Cannes Classics, que este ano conta ainda com exibições de “O Desprezo” –escolha um tanto óbvia para homenagear Jean-Luc Godard, morto em setembro–, dois longas do mestre japonês Yasujiro Ozu, “Thelma e Louise”, de Ridley Scott, “A Casa Encantada” de Hitchcock e outras joias escondidas.

O longa do italiano Tinto Brass, de 1979, causou especial bafafá no Brasil em 1992, quando a rede Organizações Martinez –a mesma que exibia os berros justiceiros de Luiz Carlos Alborghetti– decidiu apelar para a audiência exibindo o filme numa programação com o sugestivo nome de Tensão Total (a vinheta era uma mulher rebolando em frente a uma grande letra T).

Com quase três horas, o longa foi dividido em duas partes pela emissora e, após um processo de obstrução na Justiça, só a primeira pôde ser exibida. Afinal, a versão editada que rodou o mundo em fitas clandestinas e DVDs de fundo de armário tinha closes de sexo oral e penetração que pareciam descolados do restante.

Não à toa, essa produção roteirizada por Gore Vidal e produzida por Bob Guccione, criador da revista masculina Penthouse (daí a insistência nas surubas), acabou como um filme maldito para seus realizadores e estrelas.

A versão restaurada –fruto de um trabalho de três anos a partir de 96 horas de negativos originais e com uma nova introdução animada por Dave McKean–, porém, é bem menos escandalizante que a lenda.

McDowell faz um imperador serelepe e sem escrúpulos, dividindo os holofotes com uma jovem Helen Mirren, com 34 anos na época, como a libertina esposa Cesônia, e Peter O’Toole, vivendo Tibério.

Os cenários grandiosos, frontalmente artificiais, imprimem um visual teatral a partir do pastiche da arquitetura romana com o tom extravagante de um “Satyricon” –mas sem o talento de Fellini.

Assumidamente cômico, com um protagonista que berra, marcha nu, nomeia seu cavalo como chefe do senado e faz “fisting” num soldado, o filme tira sarro do poder e da decadência do Império Romano (e da hipocrisia do mundo moderno) em tom de pornochanchada.

Como é longo, aos poucos as gags parecem se empilhar sem muita razão em episódios que se unem por um fiapo de história –há humilhação de pessoas gordas, aparelhos de masturbação, soldados que lutam pelados contra plantas, estátuas de pênis e vaginas enormes, um personagem mudo digno de Zorra Total e até um parto a céu aberto.

É um circo de horrores em que os bacanais acabam sendo as partes mais agradáveis, como a coleção de “estátuas transantes” de Tibério, apresentadas num grande painel dantesco, ou o bordel imperial com as mulheres dos senadores, que ocorre num navio cenográfico.

O saldo, para o bem e para o mal, é de que “Calígula” se sai melhor como mito do que como filme. É o contrário do que aconteceu com a homenagem de Cannes ao francês Jacques Rivette.

Apesar do estopim do festival ter sido apenas a partir da sessão de “Jeanne du Barry” –o longa polêmico da vez graças ao ressurgir de Johnny Depp nas telonas–, na terça-feira, a sala Debussy já estava cheia no início da tarde para a primeira sessão do festival, com a restauração de “Amor Louco”, de 1969.

O longa de quatro horas foi celebrado numa sessão de redescoberta após anos numa cópia irregular, após o negativo se perder num incêndio nos anos 1970.

A seleção soube honrar o mais cerebral dos cineastas da nouvelle vague, destacando uma obra que pode passar despercebida e convidando suas estrelas para o palco –a belíssima Bulle Ogier, hoje com 83 anos, frequente parceira do cineasta, e Jean-Pierre Kalfon, de 84.

Mesmo menos célebre, esse épico sobre teatro e crises conjugais é uma espécie de iniciação para as 13 horas de “Não me Toque”, lançado dois anos depois.

Rivette acompanha como a relação tensa entre a atriz Claire e seu marido Sebastién, diretor e também ator de teatro, afunda um casamento e os ensaios para uma montagem moderna da “Andrômaca”, de Racine.

Com pitadas de humor e melancolia, “Amor Louco” se desdobra como a matriosca que Claire, atordoada pelas desfeitas do marido insensível e lacônico, abre furiosamente, bagunçando todo o seu quarto.

Entre a observação da trupe de teatro –feita por Rivette e por uma equipe à parte, com o documentarista André Labarthe, em películas diferentes– e o violento silêncio do casal, Rivette propõe um complexo jogo de cenas que se complementam entre ficção e realidade, abrindo novos caminhos a cada capítulo do filme, todo rodado ao longo de cinco semanas.

Como as infinitas bonecas russas, “Amor Louco” evoca o próprio ato criador e a relação entre a palavra (representada pelo texto de Racine, repetido à exaustão) e os gestos dos atores (em sintonia com o trabalho da dupla Straub-Huillet), sem transformar tudo numa sessão de psicanálise ou num julgamento moral ou social.

Se não tinha a influência católica de seu colega Éric Rohmer, o francês se rende a certos mistérios da imagem cinematográfica e da relação masculino-feminino –e aqui Sebastién irá conduzir a visão do espectador com o ambiente opressivo que cria para a esposa desde que a humilha num ensaio.

Como era de se esperar num festival frenético como Cannes, nem todos aguentaram ou puderam ficar até o final da projeção, mesmo que a oportunidade fosse rara. As palmas de quem ficou, porém, duraram bem mais que os breves segundos de quem aplaudiu “Jeanne du Barry” por educação.

O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

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