Menu
Entretenimento

Iara lemos: “Pense no Haiti, reze pelo Haiti… O Haiti é aqui….

“No Haiti, é possível comprar uma criança por cerca de US$ 10 mil”

Rudolfo Lago

28/09/2020 9h06

Os versos da canção Haiti, composta por Caetano veloso e Gilberto Gil, ecoam a cada página da leitura do livro Cruz Haitiana, da jornalista da Folha de São Paulo Iara Lemos.

A primeira vez que Iara esteve no país que ocupa parte da Iha de Espanhola foi em 2008. Logo que ela chegou, recebeu um presente que traduz profundamente a miséria haitiana: uma lata de água, pois é raro encontrar o líquido para tomar banho.

É nesse ambiente onde faltam as coisas mais básicas — e onde a escravidão infantil é tristemente algo cultural —, que Iara se deparou com a dura história de pedofilia entre padres católicos que conta em seu livro.

No país, a triste tradição de escravizar crianças (chamadas com o termo criolo de rastavek associadas à miséria e vulnerabilidade) virou terreno fértil para casos de violência escabrosa, escamoteados em uma região esquecida do mundo, como conta Iara nesta entrevista.

Como se iniciou a sua relação com o Haiti?

Minha primeira vez no Haiti foi em 2008. Eu fui para o interior acompanhar o trabalho de um grupo de freiras brasileiras em uma localidade chamada Jeremie. Quando eu cheguei lá, o presente que me deram foi um tonel com água, porque não há água encanada nem energia elétrica. Nessas idas e vindas, eu acabei deparando com uma série de outras questões, como a escravização de crianças.

O Haiti é o pais que mais escraviza crianças no mundo. Dados de organizações internacionais apontam que há entre 250 mil a 300 mil crianças escravizadas. Mais de 70% das crianças, com idade entre 3 até 15 anos não estão sob a responsabilidade dos seus pais. São escravas. São as chamadas restavek. Vai desde trabalhos domésticos, que são os trabalhos menos pesados que eles fazem, a escravidão sexual. Então, há uma cultura já de violência sexual instituída.

A partir da questão da escravidão infantil, eu deparei com a questão de pedofilia envolvendo religiosos.

O terremoto de 2010 agravou essa situação?

Se intensificaram os orfanatos no país. Que eu chamo de orfanatos do crime, porque é fácil a partir deles comercializar crianças. No Haiti, é possível comprar uma criança por cerca de US$ 10 mil. As minhas buscas foram aumentando. Em 2012, eu tive meu primeiro contato com o advogado Mitchel Garabadean.

Mitchel Garabadean é um advogado americano, que defende vítimas de pedofilia na Igreja Católica, que ganhou notoriedade por ser um dos personagens do filme Spotlight, que conta sobre a série de reportagens do jornal Boston Globe sobre pedofilia na Igreja Católica, não é isso?

Mitchel Garabadean é o maior advogado do mundo em questões jurídicas que envolvam a pedofilia a religiosos da Igreja Católica. O Mitchel não é uma pessoa muito fácil de se acessar. É uma pessoa totalmente centrada, dedicada ao apoio às vítimas. E fala com muito poucas pessoas. Demorou bastante para que eu conseguisse essa porta com ele.

Foi por intermédio de um jornalista haitiano, chamado Cyrus Sibert.

Ele hoje vive fora do Haiti, porque ele foi ameaçado de morte. Ele tinha uma rádio comunitária no Haiti, e começou a divulgar os casos de pedofilia. Nós unimos forças e conseguimos o apoio do Mitchel. Ele foi até o Haiti e teve lá acesso a processos em que a Igreja Católica pagou indenizações milionárias para vítimas de pedofilia no Haiti. Aceita pagar indenizações de cerca de US$ 60 milhões a um grupo de jovens haitianos que narra com detalhes absurdos, que estão no livro, como foram violentados por um teólogo, na presença de um padre, que inclusive era amante dele. Esse padre comandava uma escola junto com esse teólogo. Se a Igreja aceita pagar indenização a esses jovens, ela já admite um caminho de culpa.

E essas pessoas foram punidas por essa situação?

Até hoje não foram punidas. Nós tivemos um caso só de manifestação da Igreja, que envolveu um núncio da Igreja Católica, Józef Wesolowski, um pedófilo no seu grau máximo. Ele coagia religiosos que se tornavam seus amantes.

Há um caso de diácono, amante dele, que recrutava crianças, violentava essas crianças para ver se elas estavam no “gosto” do núncio para leva-las para ele. A única manifestação da Igreja Católica se refere a esse núncio, porque ele foi retirado da representação. Ninguém soube dele por dois meses. Quando se encontrou, ele estava no Vaticano. Quando ele apareceu, o Vaticano decretou a prisão domiciliar dele.
São relatos muito duros…

Isso mexeu tanto comigo que muitas vezes eu tive que parar por sanidade. Muitas das pausas que eu dei a esse trabalho foram pela minha própria estrutura psicológica.

Além de toda a dificuldade em lidar com história tão dura, houve também dificuldade para você encontrar quem aceitasse publicar esse relato?

Algumas editoras chegaram a sugerir que a história fosse transformada em ficção, alegando até que seria uma forma de eu me preservar. Outras chegaram a dizer: “Quem se preocupa com o Haiti, um país de pretos e pobres?” Eu me preocupo. E eu quero que as pessoas se preocupem com isso também. O que acontece no Haiti acontece aqui do nosso lado.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado