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Brasília

Sentidos do voo: pessoas cegas explicam o que sentem em viagens de avião

Esportistas cegos são acostumados à adrenalina da competição e comparam a experiência da vitória com a de voar

Agência UniCeub

07/10/2019 17h18

Por Guilherme Gomes, Isabela Guimarães, Luiz Claudio Ferreira e Vinícius Heck
(Jornal de Brasília/ Agência UniCEUB)

“Nós agora vamos decolar”. Acelera o avião. Acomodado ao assento, surge a voz que percorre toda a cabine. “Portas em automático”. “Bem-vindos ao voo”. O nível de adrenalina sobe e a expectativa pelo inesperado revigora. Acelera o coração. Vem a rampa da decolagem. Atravessa nuvens. “Como elas se parecem?”. “Brancas, como algodão?”. Lá embaixo tem casinhas “como se fossem de brinquedo”. O que tem do lado de lá da janelinha? Tem como explicar? “Quando voamos juntos, fiz questão de descrever para ele a sensação de passar por entre as nuvens e também expliquei que a gente vê lá de cima a paisagem de uma cidade em miniatura”, lembra Cleane Silva, esposa do jogador Raimundo Nonato, campeão paralímpico e para-panamericano no Futebol de 5. “Sonhava com essa experiência”, diz o jogador. O atleta já foi longe e viajar de avião é uma rotina hoje para o rapaz que saiu de Orocó para conquistar o mundo. “Já cheguei até no Japão”. Esportistas cegos como ele são acostumados à adrenalina da competição, comparam a experiência da vitória com a de voar. Decolagens, pousos e até as turbulências são experiências inesquecíveis para eles. Nem sempre há palavras para definir.

“Na hora do gol você sai do chão”

Raimundo Nonato nasceu em Orocó, no interior de Pernambuco, há 32 anos. Cego desde nascença, fez sua primeira viagem de avião aos 23 anos de idade, quando saiu de Petrolina (PE), fez escala em Recife e foi até o Rio de Janeiro. Ele descreve a sensação como uma mistura de adrenalina com medo, mas ao mesmo tempo “incrível”.

O pernambucano, artilheiro das últimas competições, tem duas medalhas de ouro, conquistadas em Londres 2012 e Rio de Janeiro 2016. A primeira viagem foi justamente para treinar com a Seleção Brasileira, há 9 anos. Ele assemelha a experiência com a prática do esporte. “Como eu morava no interior, só ouvia falar em avião, em voar e tal, eu tinha aquela curiosidade, aquele sonho de conseguir voar, e também tinha o sonho de ser jogador. Então a coisa dá pra relacionar nesse sentido, e realmente, na hora do gol você sai do chão, né? Na adrenalina, fica aquela sensação de prazer, de realização naquele momento”.

Raimundo batendo pênalti contra a Argentina?—?Créditos: Alê Cabral/CPB

“Eu fico tentando imaginar como é a junção do céu e do solo”

Como nunca enxergou, Raimundo tem dificuldade para construir cenários na sua imaginação. Mesmo assim, ele tenta. A mulher dele o acompanha em algumas de suas viagens, e descreve a vista da janela. “A gente tenta formar uma imagem na mente do que tá sendo descrito. Ela fala que dá pra ver as casas bem pequenininhas. Aí o cara fica imaginando miniaturas de casas, de carros, das coisas que dá pra ver lá de cima”.

Mas o que fascina Raimundo mesmo é o céu. Ele tenta descrever, mas faltam palavras para traduzir o que se passa por sua cabeça. “É difícil pra quem nunca viu ter uma imagem de como é. Muitos falam que o céu é azul, e eu fico tentando imaginar como é a junção do céu e do solo. Eu fico imaginando a pessoa olhar, ver o céu e ver a parte da terra. Fico tentando imaginar a junção. Porque eu imagino que, se você olhar assim, principalmente na água, olha pro céu, olha pro mar, em uma certa distância eles se juntam, mas eu não consigo fazer uma imagem assim”.

Entre subidas, balanços e descidas

Quando o avião acelerou, ainda no solo, Raimundo se divertiu com a sensação de velocidade. Ao longo do voo, ele percebeu que a viagem não era como imaginava. Foi mais tranquilo, ao ponto de poder colocar um copo em cima da mesa e ele não balançar. O atleta acreditava que a viagem seria semelhante a de carro pela estrada, chacoalhando mais. Apesar de ser mais estável do que pensava, ele enfrentou turbulência e sentiu medo. “Assim que decolou aqui em Petrolina, não foi nem de longe a maior turbulência que já passei, mas, como foi a primeira vez, eu não sabia como era. Aí quando ele começou a balançar um pouco, eu perguntei a uma comissária. Eu falei com ela, perguntei se era normal, já que estava com um pouco de medo. Mas ela falou que era normal porque estava entrando na nuvem. Então já me acalmei um pouco mais, falei pra ela que era a primeira vez que estava voando, daí ela deu uma atenção a mais e fui me tranquilizando”. A hora de pousar não foi tão legal quanto à decolagem, porque pareceu um “tombozinho no chão”. O barulho do freio na pista também assustou um pouco. Mas se sentiu seguro.

“Foi como uma subida de elevador”

A professora de braile, Helena Santana, de 42 anos, perdeu a visão depois dos 15 anos de idade devido à evolução de um glaucoma. Ela contou que o esporte proporcionou sua primeira viagem de avião. A brasiliense é ex-atleta de golbol e viajou com sua equipe para o Rio de Janeiro. “Eu prefiro o pouso. A sensação de estar descendo vem associado a estar chegando, de segurança”. Sobre a experiência de voar, Helena associou a outro tipo de ‘decolagem’. “Fiquei um pouco com medo porque não conhecia a experiência, mas fui me acostumando. Foi como uma subida de elevador”.

Em algumas viagens, as aeronaves passam por áreas de turbulência. De acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), a turbulência é o movimento irregular do fluxo de ar e que pode acarretar agitações na aeronave, o que causa medo em alguns passageiros. Para a professora, isso não é problema. “Na volta tivemos um pouco de turbulência, mas não tive problema nenhum porque sempre gostei de brinquedos radicais do parque de diversões”, afirmou.

“As vezes eu pergunto por onde onde o avião está passando”

Um dos principais jogadores do mundo de golbol, o artilheiro Leomon Moreno, jogador do Santos, medalhista de bronze nos jogos paralímpicos do Rio de Janeiro, tem 26 anos e já viajou “muitas vezes” de avião com a Seleção Brasileira. Ele associa os momentos principais do voo com experiências que já presenciou. “A decolagem parece uma subida bem íngreme e na hora de pousar parece uma montanha russa porque dá um frio na barriga”. Leomon nasceu com retimose pigmentar, doença que causa a degeneração da retina.

Foto: Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais

O atleta contou que curte a decolagem, a turbulência e o pouso, mas que não consegue visualizar o que as pessoas comentam durante o voo. “Às vezes, eu pergunto por onde onde o avião está passando por curiosidade e o pessoal descreve se estamos passando por cima da água ou por cima da mata. Quando estou indo para Brasília e o piloto avisa que vamos pousar, eu já começo a imaginar o Lago Paranoá e essa região próxima ao aeroporto”. Ele tem viajado a cada 15 dias de Santos para Brasília, onde mora a família. Nas viagens imagina o cenário paulistano, os prédios que circundam os aeroportos. Quando volta para casa, o voo tem “outro sabor”.

Longe ou perto

Alessandro Silva é campeão paralímpico de arremesso de disco. Vítima de uma toxoplasmose, perdeu a visão em 2009, aos 25 anos. Ele teve a oportunidade de viajar de avião antes e depois da doença, e conta que a experiência é semelhante. O que muda é o que ele faz durante a viagem. “A única diferença é que agora você não fica olhando pra fora, para ver onde você está, se está longe das casas, se está perto, se está na rodovia, em que cidade você está… Antigamente, quando enxergava, você ficava reparando em lagos, carros, entre outras coisas que tinham na terra, se estava em cima ou embaixo da nuvem. Hoje em dia você fica conversando, não esquenta a cabeça, menos na hora da saída, que dá aquele friozinha na barriga, mas é um friozinho normal”.

Alessandro comemorando resultado?—?Foto: Comitê Paralímpico Brasileiro

Nuvens de gelo

A universitária e multiesportista Viviane Queiroz, de 22 anos, também sabe que as viagens de avião despertam sensações semelhantes às de quando nada (duas vezes por semana) ou pedala (duas vezes por mês). O primeiro voo foi aos 2 anos de idade, então ela não se lembra. Porém, por volta dos 13, viajou para Salvador e tem lembranças daquele momento, que se assemelhou a uma conquista. “Liberdade, segurança, o prazer de sentir ‘olha só o que eu to fazendo’. A sensação de poder, de sentir que tudo é possível, de que eu posso, eu consigo!”.

Acompanhada por sua mãe nesse voo, Viviane lembra do que se passava pela sua cabeça enquanto sua mãe narrava o que era visto da janela. Ela se assustou com a turbulência, e sua mãe explicou que os tremores ocorriam porque o avião estava entrando nas nuvens. Quando a turbulência passou e soube que estavam acima das nuvens, a jovem se questionou como elas seriam. “Eu não sei… talvez sejam feitas de gelo, ou de neve… alguma coisa assim… eu não sei!”

Quando perguntada se a viagem de avião poderia se comparar com algum esporte que pratica, Viviane encontrou no voo a mesma sensação de liberdade que encontra no ciclismo.

Viviane Queiroz?—?Arquivo Pessoal

Como um escorregador

No momento da decolagem, assim que o avião deixa de tocar o chão, o corpo sente que está subindo. Para Viviane, a impressão é de que ela está indo para o céu. “Eu sinto que a gente está no céu porque a gente sabe que o céu está em cima da gente. Quando você olha para cima, vê o céu… Então a imagem que eu tenho é de que eu estou indo mesmo para o céu, como se eu estivesse indo em direção a ele”.

Em relação à descida, Viviane comparou com o escorregador de um parquinho de diversões ou com uma rampa. “Quando você sobe em uma rampa bem alta e desce, é uma sensação mais ou menos igual. Aquele escorregador que você desce no parque, quando o avião pousa a sensação que a gente tem é essa”.

Foto de Benjamin Voros – Unsplash

Experiência tátil

O psicólogo Geovane Alzino, que é cego, explica que a experiência de voar para a pessoa com deficiência visual reveste-se de uma linguagem tátil e sensorial. Ele compara a sensação com a de estar em brinquedos em parque de diversões. “Imaginamos as nuvens, como se fossem em forma de algodão. A linguagem permite a formação dessas ‘imagens táteis’”. Um exemplo é quando, no trânsito, alguém fala sobre fazer o balão. “E ficava pensando o que seria fazer um balão. Entendi quando o carro fazia as curvas. A sensação do avião se assemelha a essa ideia. Todos temos curiosidade em saber o que se passa do lado de fora da janela. Por isso, as pessoas narram para nós”. As pessoas narram. Eles lembram. As imagens se reconstroem. Voar eterniza-se com outro olhar.

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