Menu
Brasília

Feminicídio não é só caso de polícia; é preciso uma mudança cultural

Arquivo Geral

09/08/2018 7h00

fotos: Rayra Paiva Franco Pais e filhos de Janaína Romão, morta pelo ex-companheiro, choram a perda da mulher desde julho deste ano Janaína foi assassinada porque o ex-marido não aceitava o fim do relacionamento. Foto: Rayra Paiva Franco/Jornal de Brasília.

Jéssica Antunes
[email protected]

Em briga de marido e mulher se mete a colher, a polícia, a Justiça e o que mais for necessário para cessar um ciclo de violência que pode levar à morte. Duas das três vítimas de feminicídio desta semana conviviam com ameaças e agressões há anos. Para especialista, em um cenário com quase 80 ocorrências diárias envolvendo a Lei Maria da Penha no Distrito Federal, são necessárias políticas que mudem a mentalidade machista enraizada na sociedade.

A Secretaria de Segurança Pública e da Paz Social contabiliza 7.169 ocorrências ligadas a violência doméstica. O Ligue 180, vinculado à Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, recebeu sete denúncias diárias de moradores do DF no primeiro semestre do ano. Aqui, o número de mulheres mortas nesse contexto já ultrapassa todo 2017.

“Lidamos com um momento em que a mulher assumiu uma série de condições na sociedade, e ocorrem situações que não veríamos no passado. O machismo se atualiza, encontra novas maneiras de se apresentar e se soma às relações habituais pautadas nisso”, afirma a socióloga Tânia Mara de Almeida. Ela exemplifica: ciúme é visto dentro da normalidade, mas tem relação com posse. “Mulheres estão questionando, deixando de aceitar determinadas falas e restrições e isso evidencia situações que antigamente não eram vistas”, diz.

A especialista lembra que, no passado, a violência sofrida pelas mulheres era vista como “natural”: “Elas tinham de aceitar, ser submissa aos companheiros”. Ela diz que essa mentalidade sofre mutação, mas ainda é embarreirada inclusive por autoridades policiais que minimizam as “brigas de casal” e chegam a duvidar de relatos.

“A mudança não vem com uma fala, uma palestra, uma tragédia. É necessária uma ressocialização dos nossos valores, de nossas ideias. Com capacitação e sensibilização de profissionais que fazem parte da rede de proteção”, defende. De acordo com Tânia, discursos atualizados podem ser encontrados mesmo dentro de determinadas crenças religiosas.

Enfrentamento
O problema de violência contra a mulher que pode levar ao feminicídio é complexo e sistêmico. “O enfrentamento tem de ser em conjunto de toda a rede de proteção. Parte da decisão da mulher enfrentar o ciclo de violência, mas também de quem está assistindo aquilo. Todos temos corresponsabilidade quando vemos uma pessoa vulnerável”, explica a pesquisadora.
Em 2012, a o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada mesmo que a agredida não procure por socorro. Assim, qualquer pessoa pode fazer a denúncia. No DF, a titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, Sandra Melo, não quis atender a reportagem para esclarecer o procedimento.

Pais e filhos de Janaína Romão, morta pelo ex-companheiro, choram a perda da mulher desde julho deste ano. Foto: Foto: Rayra Paiva Franco

“Não sei que diabo de amor é esse”

A família de Janaína Romão ainda tenta aprender a lidar com a dor. Com o choro preso na garganta, que vez ou outra escapa pelos olhos, eles usam a história para lutar que casos não se repitam. “Esse é o tipo de coisa que não deveria acontecer jamais. As mulheres não podem ter medo. Elas têm que confiar na família, na Justiça, têm que buscar ajuda”, diz Cleire Romão Lúcio, 29 anos.

No dia 15 de julho, a irmã dela entrou nas estatísticas do crime que já vitimou 19 mulheres na capital neste ano. Stefanno Jesus Souza de Amorim confessou que esfaqueou a ex-mulher cinco vezes na frente das filhas, em Santa Maria. Janaína conhecia a realidade da violência doméstica: era agredida e ameaçada desde o início da relação contestada pelos familiares. Ela registrou boletim de ocorrência duas vezes e os retirou em seguida.

Uma vez, a mãe tentou pedir socorro. Do outro lado da linha, ouviu um policial dizer que não poderia fazer nada em briga de casal. “A Jana sabia o que estava acontecendo, mas sempre perdoava. Era assim desde criança. Não tinha raiva ou mágoa de ninguém. Ela acreditava que aquela era a forma que ele conseguia demonstrar amor, que era normal”, explicou a mãe, Miza Carlos Romão, 66 anos.

“Não sei que diabo de amor é esse”, tratou de emendar o pai. Edgar Soares Lúcio, 67, era contra a relação e tem raiva. Ele espera que o algoz tenha pena máxima, sem regalias.

Na época do crime, o casal estava separado. Um dia antes, ele ligou para ela. “Elogiou demais, colocou ela no céu. No dia seguinte, minha filha foi buscar as crianças e nunca mais voltou”, diz a mãe, Miva Romão. “Ele fez minha irmã sofrer demais. Ela não perdeu só os seus anos que estiveram juntos. Perdeu tudo”, lamenta Cleire.

As crianças, 2 e 4 anos, estavam lá na hora do crime. Viram o pai assassinar a mãe. Hoje elas começam a ter acompanhamento psicológico, mas ainda choram muito e questionam os motivos para tudo aquilo ter acontecido. “É linda!”, diz a mais velha, olhando para fotos da mãe. As duas não chamam o homem de pai e sempre demonstraram medo. Segundo a família, elas também eram ameaçadas e agredidas.

Relembre o caso:
‘Que sangue é esse?’, perguntou filha de Janaína Romão ao pai, autor do assassinato
Algoz de Janaína Romão diz que agiu de “sangue quente”
Segurança no enterro de Janaína é reforçada após ameaças do ex

Medo de denunciar

Nesta quinta-feira (9), Marcelo Adson, 35 anos, vai enterrar a irmã. Adriana Castro Rosa Santos, 40, foi assassinada pelo marido, o policial militar Epaminondas Silva Santos, 51, que cometeu suicídio em seguida. Antes disso, a vítima desabafou com a família. Após anos de sofrimento silencioso, descreveu uma vida de ameaças. “Não foi do nada. Ele dizia que mataria ela e as crianças há anos. Ela não aguentava mais. Quando soubemos, não deixamos ela voltar por medo. Minha irmã foi vítima da obsessão”, conta.

Vieram à tona anos de violência psicológica com a arma de fogo em punho. Para se desvencilhar, ela teve que lutar com ele em uma viagem, e incontáveis vezes já esteve na mira do revólver que tirou sua vida na manhã de terça-feira. Adriana não queria denunciar. “Ela não queria prejudicá-lo para não perder a farda, prejudicar os filhos, piorar a situação. Pediu para que não nos mexêssemos. Ele precisava de ajuda psicológica, mas foi muito tarde”, lamenta.

Marcelo reclama do corporativismo. Após o crime, brotaram viaturas, que fecharam a rua. Enquanto oito policiais protegiam o corpo de Epaminondas, ele diz que teve de puxar o lençol da cama para cobrir a irmã. “Quantas Adrianas têm por aí? Que sofrem e têm medo de denunciar, ainda mais quando envolve filhos? Infelizmente a minha irmã foi só mais uma e não era pra ser assim. Espero que sirva de exemplo, de alerta para aquela mulher que é ameaçada”, desabafa.

Ainda neste assunto: Vítimas da covardia. DF registra três casos de feminicídio em três dias

Pena de denunciar

Quando Carla Zandoná, 37, registrou a primeira ocorrência de agressão, em 2016, ela disse que tinha pena do companheiro com quem estava há quase 20 anos. Por isso, não tinha buscado a polícia antes. Naquele ano, ela relatou ataques físicos e morais, com lesões no maxilar, enforcamento e socos.

No ano seguinte, ela voltou à delegacia e contou que Jonas Zandoná tinha personalidade violenta e que era alcoólatra. Relatou que o marido havia xingado-a com “puta velha, alma sebosa e filha do diabo” e feito ameaças: “Eu posso até ser preso, mas quando sair da cadeia eu te mato!”, descreveu a mulher.

Agora, Carla não pode mais contar nada. Ela despencou do quarto andar de um prédio da 415 Sul. Ali, vizinhos dizem que gritos, brigas e agressões eram constantes, mas nenhuma denúncia foi registrada. Para a polícia, os indícios apontam para homicídio qualificado como feminicídio. O suspeito, alcoólatra, diz não se lembrar do ocorrido – como todas as outras vezes.

Delegado Ataliba revela que Carla, morta na Asa Sul, denunciou marido. Foto: João Stangherlin/Jornal de Brasília.

Saiba Mais

Somente no primeiro semestre de 2018, o Ligue 180 recebeu mais de 63 mil denúncias relacionadas a violência doméstica no País. Foram, em média, 14 ligações por hora.

A maioria, aproximadamente 33 mil, é relatada como violência física. Depois, o maior número de informações acusa violência psicológica.

A QUEM RECORRER

O relato de violência doméstica contra a mulher pode ser feito em qualquer delegacia, mas há diversos órgãos aos quais a vítima pode procurar para se proteger e buscar seus direitos.

LIGUE 180: Recebe denúncias ou relatos de violência, reclamações sobre serviços da rede de apoio. Também orienta e encaminha.

CLIQUE 180: Aplicativo de smartphone atende vítimas e denúncias de agressões. permite acesso direto à Central de Atendimento à Mulher.

LIGUE 190: Acione a Polícia Militar em caso de emergência. Exclusivamente no DF, há 17 equipamentos públicos que acolhe, ampara e orienta mulheres vítimas de violência.

DEAM: A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher tem expediente ininterrupto na 204/205 Sul

CREAS: Há 10 Centros de Referência Especializado de Assistência Social espalhados pela capital também. Eles recebem relatos e os encaminham os casos.

Casa Abrigo e a Casa Flor: Oferece acolhimento a mulheres e filhos vítimas de violência para com proteção e sigilo.

CEAM: Quatro Centros Especializados de Atendimento às Mulheres oferecem atendimento psicossocial, jurídico e cursos profissionalizantes.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado