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Brasília

Pessoas cegas relatam as dificuldades com pandemia

Como pessoas cegas enxergaram mais durante a crise. Já invisibilizadas no cotidiano, a pandemia expôs ainda mais a falta de políticas públicas

Agência UniCeub

25/08/2020 20h17

Por Gabriela Gallo/Agência de Notícias UniCeub

Amanhece e Viviane acorda cedo para começar mais um dia isolada em casa. Pode ser qualquer dia da semana na região administrativa do Gama, mas ela tenta seguir um cronograma para, pelo menos, não se perder nos dias e tentar compensar a vida agitada que tinha. “É fundamental nessa quarentena manter uma rotina, independente do que você faça, porque isso deixa a gente mais forte e consegue viver um dia de cada vez”. Ela afirma seguindo mais um dia em casa, acompanhada dos pais. A jovem de 23 anos é recém formada em Letras Tradução Inglês pela Universidade de Brasília e, enquanto espera a instituição liberar seu diploma, estuda para concurso público. De segunda a sábado, ela mantém um ritmo de estudos das 9h às 12h e das 14h às 17h. Depois aproveita para colocar as leituras em dia e assistir a séries para passar o tempo.

No mesmo dia, ainda no sul do Distrito Federal, no P Sul (setor da Ceilândia), José Augusto Dias começa outro dia também isolado com a esposa e os filhos. O contador de 36 anos teve que adaptar seu escritório de contabilidade, o qual administra junto com a mulher, para home office. Mesmo com a legislação permitindo a abertura do comércio, o casal preferiu manter as atividades à distância para evitar a exposição ao vírus, tanto para quem trabalha no escritório quanto para a pessoa que cuidava de seus filhos enquanto eles estavam no trabalho. Assim como Viviane, a filha mais velha de José estuda em casa com aula por videoconferência, mas como uma criança de oito anos, têm as aulas ministradas por uma professora. Nesse exato mesmo dia, Fernando Rodrigues, professor de 43 anos, acorda sozinho em sua casa no Riacho Fundo 2.

Três histórias, três rotinas diferentes, o mesmo complicador: a cegueira. Viviane é completamente cega desde o nascimento devido a má formação enquanto ainda estava na barriga da mãe, seus pais descobriram quando ela tinha seis meses de idade. Fernando ficou cego com seis anos de idade porque teve um deslocamento de retina. A retina é uma camada fina de tecido fotossensível localizada no interior do olho a qual, ao passar a luz, recebe as imagens e as envia para o cérebro, portanto, sem ela as imagens não conseguem ser captadas. 

Ao contrário dos outros, José não é completamente cego, mas é portador de retinose pigmentar, uma doença ocular degenerativa a qual desenvolve pigmentos na retina que impedem a visão. A doença vem evoluindo há cinco anos e hoje ele tem cerca de 8% a 10% da visão, ele não identifica pessoas e nem objetos, só consegue distinguir se o ambiente está claro ou escuro. 

 “Os cegos aprendem depressa a orientar-se”, disse um personagem não identificado na obra “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago. Apesar do contexto não se tratar de uma pessoa que estava realmente cega, a frase pode ser encaixada na vida destes três personagens. Viviane faz natação e ciclismo; ela e Fernando andam de ônibus sozinhos e ela e José respondem qualquer mensagem digitada em seus celulares. Todos seguiam uma vida considerada como normal, mesmo que adaptada, até a chegada da Covid-19.

Em casa, Viviane consegue estudar com a ajuda de voluntários que lêem documentos e materiais para a preparação de concurso público. José consegue trabalhar com home office, mas precisa ficar quase o dia inteiro no telefone com os funcionários. “Eu não consigo fazer muita coisa, utilizando os recursos de informática no computador haja vista que a pouco tempo eu comecei a estudar e estou tendo orientação. Cada dia que passa eu estou aprendendo a reutilizar a questão de computadores, mas os sistemas contábeis não são acessíveis. Mesmo que eu saiba entrar e enviar e-mails ou pesquisar alguma coisa na internet, a parte contábil não tem esse suporte”.

Cuidados

Com a pandemia, os cuidados essenciais são lavar bem as mãos, não tocar no rosto (especialmente olhos, nariz e boca) e o distanciamento social. É recomendável também higienizar as máscaras, sapatos e roupas assim que entrar em casa, caso precise sair por algum motivo. Mas no caso dos deficientes visuais as mãos precisam ser usadas constantemente. “Nossas mãos são os nossos olhos”, afirma Viviane ao contar da dificuldade em não poder tocar nas coisas. 

Ela, se precisar sair de casa, ainda pode contar com a ajuda dos pais e evita levar sua bengala, mas Fernando por morar sozinho precisa do auxílio da bengala para poder sair de casa. E, por mais que consiga andar sozinho com a bengala, ainda precisa de ajuda para atravessar a rua, por exemplo (especialmente se o semáforo é silencioso). “A gente tá andando na rua e o pessoal não quer ajudar a gente e isso complica”. “Quem não vê nada, quando você estiver na rua, em um lugar aberto, um lugar público, a gente tem que contar com o bom senso das pessoas para que elas se afastem da gente porque a gente não vai saber se está ou não distante”, reforça Viviane.

Higiene

O professor da Secretaria de Educação também lembra de outras medidas tomadas no distanciamento social não pensada para pessoas cegas: “As marcações de filas não são marcações em alto relevo. São marcações que a gente não percebe o distanciamento, aí isso é difícil”.

Assista a filme documentário sobre a história de Viviane (filme de Isabela Guimarães)

Assista também ao filme sem audiodescrição

Outra dificuldade relatada por Viviane é sobre mobilidade “A bengala é nosso meio de locomoção e ela toca em tudo: no chão, na parede. E, se o lugar estiver contaminado pode passar para a bengala (como um objeto de metal) e a gente pode contrair o vírus através da bengala”. 

A constante higienização de bengalas e muletas com água e sabão e álcool 70% é uma recomendação segundo a Secretária da Pessoa com Deficiência do Distrito Federal (pasta assinada pelo governador, Ibaneis Rocha). Além dela, outra medida sugerida é, caso alguém ofereça ajuda a uma pessoa pessoa cega, ela precisa segurar no ombro do voluntário. A ideia é o voluntário ter o cotovelo livre para poder cobrir o rosto em casos de espirros.

Nos próprios momentos de orientação para a técnica correta da lavagem de mãos foi algo relatado por José Augusto. “A televisão mostrava isso a todo momento mas era algo que eu não conseguia entender porque é algo muito visual. Precisei de uma ajuda da minha esposa para que ela pudesse me explicar, até então, pra mim era uma coisa nova essas técnicas. […]Faltou uma iniciativa de audiodescrição dos passos de como lavar as mãos.” 

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Com todas essas questões, alguns especialistas argumentam que pessoas com deficiências em geral podem ser encaixadas como grupo de risco, apesar da OMS não classificá-las dessa forma. José Augusto comenta que essa falta de visão da OMS não o atrapalhou por estar trabalhando em casa, mas ouviu de colegas esse tipo de reclamação. “Muitos deles [pessoas cegas] estão tendo que ir ao trabalho. Aí ocorre toda a dificuldade de locomoção, de tocar em tudo – a gente precisa do tato pra seguir no ônibus”. Um problemas para pessoas cegas. José Augusto lembra o martírio de uma pessoa que trabalha em um hospital da Secretária de Saúde, que precisava ir ao trabalho. “Ela comentou que, até na hora de tentar achar o pote do álcool em gel para poder fazer a assepsia das mãos, estava com dificuldade. Nisso, o risco é muito grande. Faltou um pouquinho da OMS a visão em relação aos deficientes”.

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O Art. 4º da Lei Brasileira de Inclusão a Pessoa com Deficiência (Nº 13.146/15), inclusive as cegas, afirma que “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhum tipo de discriminação”. No parágrafo 1º “Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas”. Mesmo em tempos de pandemia, o ir e vir de forma não discriminatória é um direito de qualquer cidadão. As pessoas cegas estão vulneráveis.

Na obra de Saramago, há uma “pandemia de cegueira” na qual diversas pessoas ficam cegas sem motivo e, para não ter o risco de transmitirem a até então cegueira desconhecida são obrigados a se isolarem do mundo e de seus conhecidos e pessoas amadas. Ao contrário da cegueira tradicional onde tudo é preto, eles estão imersos em um “mar de leite” onde tudo é branco. Por se tratarem de recém cegos, eles ainda estavam aprendendo a lidar com a situação, sem nenhum ou pouco auxílio do governo para a situação. O livro mostra o descaso do Estado e como o medo do desconhecido com as pessoas cegas, verdadeira situação dos que estavam isolados. 

Entretanto, a mulher de um médico que foi isolado (Saramago não cita nomes nessa obra) fingiu também estar cega para poder acompanhar o marido e ajudar as pessoas que estavam lá dentro. Viviane lembra que, neste momento, cabe a solidariedade das pessoas que estão próximas e podem ajudar em algo, para minimizarem a situação. “Tem gente que está se voluntariando para fazer compras no supermercado pro pessoal que mora sozinho. Muitos estão contando com a ajuda desses voluntários para eles não precisarem sair de casa”. Porém, ela relembra que muitas pessoas cegas ainda tem medo do toque por conta do vírus.

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