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Brasília

O florescer de Margarido: trabalho na roça na infância, perdas e vitórias na capital do Brasil

Aos 6 anos, estava colhendo feijão e plantando arroz

Redação Jornal de Brasília

14/05/2024 10h47

Foto: Arquivo pessoal

Por Ana Neves
Agência de Notícias CEUB

Por duas vezes, Margarido Corrêa sentiu a morte de um pai. Em sua terra (Campo Alegre-GO), apesar do nome, a tristeza muitas vezes reinava. Lá não existia infância. Não tinha maquinário, não tinha nada.

Tudo o que restava era sobreviver pela força dos braços. Lá, quando um pai morria, ele renascia nos primogênitos que ainda habitavam na inexistente infância. Assim foi com a família de 7 irmãos de Margá, que aos 5 anos perdeu seu pai. Hoje, aos 64, perdeu o irmão-pai.

Chagas

Sem alguém para acudir, no meio da roça, se foi seu pai, com a idade de 42 anos. Em abril, foi-se o seu irmão, aos 71 anos.

Os dois foram levados por complicações geradas pela Doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, a partir da picada do barbeiro.

Benedito da Silva Borges, conhecido apenas como Borges, o segundo dos irmãos mais velhos, era tido como um pai para Margá. A mais recente perda mexeu com o coração de Margarido.

Apegado pela responsabilidade, Borges também via os irmãos mais novos como se fossem seus filhos.

“Foi ele que me adotou. Ele nunca me deu um tapa e eu não era um um moleque tão fácil, e mesmo assim conseguiu me corrigir que você precisa ver, sabe?”, conta ao se lembrar do seu irmão.

“Perdi dois em um. Era meu irmão-pai”

A ausência de Borges deixa marcas e se revela mais intensa do que o esperado.

“Eu gostava muito dele. Depois que ele foi embora, eu descobri que eu gostava mais do que eu imaginava”, relata Margá, com a voz encoberta pelo luto, ao relembrar como a relação entre os irmãos e a família sempre foi respeitosa e honrada.

Trabalho dignifica


Margá, apelido para o incomum nome de Margarido Corrêa, que antes lhe causava vergonha, nascido no dia 5 de março de 1960, quarto filho de Maria Corrêa e José Gerônimo, nem sempre teve esse nome.

Por voto, ele se chamava Lázaro Margarido. Apenas aos 6 anos, quando saiu da roça e foi para a cidade, conseguiu sua certidão de nascimento.

A surpresa veio quando ele e a mãe souberam que para se ter nome composto era necessário pagar uma quantia a mais em dinheiro. Assim, Lázaro Margarido passou a ser apenas Margarido, por vontade de sua mãe, já que seu pai não mais vivia.

Fato que fez com que Margá fosse registrado como ignorado por sua paternidade, pois seus pais eram casados apenas no religioso.

Na roça


Assim, o cartório não aceitou que fosse registrado o nome de seu pai no primeiro documento que possuira na vida.

Sem outra opção, em Campo Alegre começava-se a trabalhar na roça aos 4 anos, levando água na cumbuca e já com a enxada em mãos para capinar.

Aos 6 anos, estava colhendo feijão e plantando arroz. “Era todo mundo junto no mesmo local e com um objetivo só, a sobrevivência da família”, diz.

E mesmo com os esforços unidos da família de 9 pessoas, considerada pequena para aquela época, a fome ainda se fazia presente.

“Assim todo mundo vivia em família. Tinha os animais e tudo, mas não era suficiente, nem uma vida fácil”, disse.

Marcado pela súbita morte do pai, o menino com nome de flor viu sua vida ser mudada como um todo. Como pior, sua vida se alterou com a mudança de hierarquia dentro da família. Seu irmão mais velho, Geraldo Borges, assumiu a posição de chefe da família.

O respeito entre todos os irmãos, conta, continua forte do mesmo jeito. “A gente é muito unido, muito unido”.

Área rural


Os filhos saíram da área rural, pois já não tinham como viver lá. Então, deixaram suas terrinhas e foram para a cidade de Pires do Rio, interior do Goiás, onde um dos irmãos passou a trabalhar capinando roça. Os outros dois saíram do interior e vieram para Brasília trabalhar. Um em linha de ferro, outro como guarda de supermercado. Fizeram então suas vidas na capital do país.

Nessa época, cada irmão mais velho passou a adotar um dos mais novos. Margá foi acolhido quando tinha a idade de 11 anos por Borges, o segundo na ordem de nascimento dos filhos, que veio ao Distrito Federal com sua esposa. Margá morava com a mãe e outros dois irmãos.

“Aí muito difícil a vida ele foi e disse: ‘eu vou levar você pra Brasília’. E foi quando ele me trouxe e daí a gente começou a trabalhar, porque a vida era trabalhar, né?”. Presenciando o início de Brasília, a família começou a limpar apartamentos.

Trabalho precoce

E, não como hoje, que se é proibido registrar a carteira com menos de 14 anos, Margá registrou sua carteira de trabalho ainda aos 12 anos, tendo começado a trabalhar ainda mais moço que isso, trabalhando no açougue de um dos seus irmãos e vendendo doces e botijões de gás.

Morou com Benedito até seus 19 anos, quando saiu da casa do irmão, levando sua irmã caçula junto, que já morava com eles. Passaram então a morar somente os dois, até Margá se casar em 1997.

“Trago lembranças muito marcantes até esse ponto, por exemplo, quando eu entregava gás eu me lembro que a bicicleta, que usava, tombou. Imagina você com 3 bujão de gás, dois na frente e um atrás, e tentando segurar a bicicleta. Era muito peso e eu ainda franzino, com uns onze anos, não consegui segurar, tombou. Aí chegou uma pessoa e me ajudou sem nem me conhecer. Eu lembro direitinho, sabe? Muito bom”, recorda Margá da época de menino com riso na voz.

Margarido havia conhecido e começado a frequentar a escola apenas aos 8 anos de idade, já com seu pai falecido. Após a adoção e já morando no DF, concluiu o primeiro grau, hoje conhecido como ensino fundamental, à noite com a ajuda do seu irmão. “Eu trabalhava de dia e estudava à noite”, diz. Conseguiu finalmente terminar o ensino médio, se dedicando aos estudos sempre na parte da noite, o único momento que tinha para tal. “Com a ajuda do meu irmão, claro. Ele sempre me ajudando”.

Com diploma em mãos, prestou vestibular na época para o curso que sempre almejou, de psicologia, e passou. Infelizmente, não pôde frequentar por causa do preço, mesmo tendo passado na prova. Mas esse não foi o fim. Aos 29 anos, conseguiu fazer o curso superior de Teologia através da ajuda de sua igreja.

O fato de começar a trabalhar cedo era uma exigência ainda da manutenção e sobrevivência, numa época em que a vida era difícil.

“Tudo era diferente. Todo mundo tinha que se ajudar. Hoje se desperdiça muito, tudo, mas naquela época não”, diz.


O objetivo permanecia centrado sempre em ajudar o familiar. Tanto é que, já com a carteira de trabalho em mãos, Margarido começou a trabalhar como empacotador e todo o dinheiro que recebia o entregava para seu irmão.

“O sentimento em relação a isso não era ruim, era bom. Eu gostava disso, era sofrido, mas parece que a gente estava dentro de um princípio de família, sabe?”, relembra.

“Eu adorava todos eles, sabe? Todos os meus trabalhos eu adorava”, diz ao se lembrar de cada emprego por que já passou. “O mais difícil era só o começo”.

Margarido relata que, por mais que se quisesse e tivesse que começar em um novo emprego, o medo era um sentimento que vinha. Mas depois que se começava, conta, a sensação era de desafio, e essa parte era a que gostava.

“O emprego que eu menos gostei acho que foi o de açougue quando eu comecei a trabalhar então eu não consegui assimilar as partes do boi que era vendido. Então isso me deixava muito medroso do meu irmão que podia me bater, né? A gente não podia errar porque senão perdia cliente. Acho que foi o meu pior emprego”, recorda.

No supermercado, depois de empacotador, transitou por outras áreas como a de repositor, a pessoa que põe a mercadoria nas prateleiras, a do verdurão e pela de laticínios.

Assim ficou por 5 anos, até a época de servir ao exército, aos 17 anos. Depois disso, com seus 18 anos, foi trabalhar numa empresa como auxiliar de escritório.

“É um faz tudo dentro de um escritório, sabe?”. Permaneceu no emprego por cerca de 5 anos, até que, aos 24 anos, passou em um concurso público de uma empresa pública federal.

“Vale lembrar que nessa época, além dessa função, eu também trabalhei como taxista nas férias, dos meus 18 aos 23 anos, para complementar a renda”, ressalta.

No emprego público, teve a função de agente administrativo. E, mesmo no serviço público, se inscreveu na UnB para datilografar trabalhos e fazer monografias.

“Hoje a gente chama de digitar, mas naquela época era datilografar, que era em máquina. Depois eu comprei um computador também para fazer trabalho extra. Eu era bom de Word, então eu fazia diagramação e deixava as apostilas prontas pras professoras. Mas isso já era digamos assim, como um freelancer”, detalha.

Ainda na área pública, trabalhou na área de planejamento interno até conquistar o cargo de chefe de unidades de convênios. Ficou na chefia por 12 anos, até 2020 quando, aos 59 anos, puxou sua aposentadoria. Ao todo, Margá ficou 36 anos trabalhando na empresa.

“Este último tempo de serviço público foi o meu crescimento interno na empresa, mas o que foi marcante foi o meu crescimento pessoal e o legado que eu deixei lá de amizade. Até hoje todos me ligam. São mais de 300 pessoas e continuo amigo de todo mundo, isso é o que eu mais gosto”, conta.
Hoje, com 64 anos, mesmo aposentado, Margá continua trabalhando. Para permanecer com a vida ativa e manter o contato que tanto gosta com outras pessoas, montou uma empresa de turismo.

“Ah, minha vida hoje é uma benção, uma maravilha, eu adoro a minha vida. Já sou aposentado, então eu já tenho o meu ganha pão até o dia que Deus me levar, e não vai ser tão cedo. Eu vou morrer só com 103 anos, viu? Então tem muita coisa aí pela frente”, brinca.

“Trabalhar é muito bom”, esse é o ensinamento que Margarido traz consigo.

Para ele, os resultados virão, não só financeiros, mas também alegrias e conquistas, não importa o que se faça na vida, desde que seja bem feito e com alegria.

“O trabalho de fato dignifica. Independente do que você esteja fazendo, se é um trabalho braçal, se é vender um doce, se é entregar um gás, se é você ser um um açougueiro, sabe? Se você é um taxista, se você é um servidor público é que se você faz. Se você faz esse trabalho com prazer, esse trabalho vai te dar alegria e vai te dar retorno”, diz.

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