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Brasília

Especial: “É preciso estar atento e forte”

… porque ‘’’não temos tempo de temer a morte”, como diz a canção de Caetano

Marcus Eduardo Pereira

13/09/2019 5h44

mundo novo: MORTE

Olavo David Neto
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No Ocidente, a morte é tabu: morrer é a ideia final, e deve-se lutar até o fim para evitá-la. No Oriente, menos: em geral, a morte é celebrada como parte inerente à vida, e é recebida com aceitação e certa reverência.

A primeira visão costuma levar inevitavelmente à prática da chamada distanásia — uma “obstinação terapêutica” na qual se prolonga, por meios artificiais, a vida do enfermo considerado incurável, às vezes levando a grande sofrimento.

A segunda visão, ao contrário, pode levar ao chamado paliativismo — ou cuidados paliativos —, conjunto de práticas de assistência ao paciente incurável que visa oferecer dignidade e diminuição de sofrimento em pacientes terminais ou em estágio avançado de determinada enfermidade.

É uma ideia relativamente nova que vem crescendo no mundo — e que já chegou ao Brasil e a Brasília.

Aqui, a ideia foi inaugurada na virada do milênio, na Área Especial Noroeste: público, o Hospital de Apoio de Brasília (HAB) é, ao mesmo tempo, pioneiro e referência de paliativismo. Ao todo, dez médicos, dois nutricionistas, um terapeuta ocupacional, um fisioterapeuta, dez enfermeiros, dois psicólogos, 35 técnicos de enfermagem, dois assistentes sociais e dois farmacêuticos clínicos oferecem assistência, terapias alternativas, conforto e alívio aos pacientes terminais ali internados.

“No meu plantão ninguém morre”

Ainda que a distanásia venha perdendo espaço, o trabalho da Unidade de Cuidados Paliativos (UCP) do HAB é visto com certa desconfiança pela comunidade — que muitas vezes vê a ala, gerida pela médica Eliza Marquezine, apenas como o lugar “ao qual se vai para morrer”. Alguns comentam que este é o trabalho mais fácil: —apenas pegar na mão e esperar morrer”.

Mas a realidade inerente aos cuidados paliativos é muito mais rica. De fato, é para lá que vão os pacientes que não têm cura — mas, ao invés da ideia de morte e sofrimento, a ala é movida pelo esforço de dar qualidade de vida ao paciente e permitir que o final de sua jornada seja mais suave, longe dos tubos da tradicional “obstinação terapêutica” rumo a uma alta que não virá.
A chefe dos Cuidados Paliativos do HAB Eliza nutre a certeza de que contribui para a plenitude da vida em seus últimos momentos — e que ajuda o paciente durante o que considera um ritual de passagem. “A gente tem recursos pra trazer conforto pro paciente — e estar junto faz toda a diferença”, diz Eliza, advertindo que, “se uma pessoa tiver uma diretiva de cuidados paliativos e o médico plantonista se recusar, dizendo ‘no meu plantão ninguém morre’, a família pode depois processar esse médico por distanásia”.

“Eu tive uma boa vida”

Nascido em Picuí, na Paraíba, Jair Rodrigues chegou à nova capital da República em 1977. Décadas depois, em 2018, aos 49, descobriu um câncer na garganta. Hoje magro, de pele áspera, ainda positivo, ainda sorridente, Jair está internado sob os cuidados de Eliza Marquezine na UCP. A enfermidade lhe tirou a fala, e ele se comunica por meio de um bloquinho no qual escreve as mensagens que não consegue exprimir com gestos. Foi assim que fez um pedido inusitado, mas cada vez mais comum na ala.

Em seu leito, Jair disse às enfermeiras e voluntárias que gostaria de formalizar a sua relação com mulher com quem passou os últimos 20 anos. No casamento, o paraibano ficou feliz. Ele aponta para as enfermeiras e voluntárias, indicando gratidão às pessoas que o rodeiam.

“Eu tive uma boa vida”, responde, negando com a cabeça o medo de morrer.

À beira do leito de Jair, a voluntária da UCP Isabel Tostes olha para o paciente que já se tornou um amigo. “A gente faz por amor mesmo; pra trazer um pouco de alegria no final da vida dos pacientes. Quem está aqui não vai simplesmente morrer; vai deixar a vida recebendo carinho”, comenta Isabel.

“Vão me receber bem”

Grávida, a médica Eliza convive diariamente com o dramático paradoxo de gerar uma vida e aliviar os últimos momentos de seus pacientes. “Eu tento — e a maioria dos profissionais paliativistas também tentam — tratar a vida como algo transcendente”, diz. Católica, Eliza acredita que estará “ao lado do Pai” após a morte.

“Acho que meus pacientes me receberão bem no Céu, pois eu me dediquei para que a morte deles fosse tranquila, sem dor”, diz, com um sorriso entre lágrimas.

Cicely Saunders

Alguns historiadores apontam que, no Ocidente, a filosofia paliativista começou na Antiguidade, com as primeiras definições sobre o cuidar. Na Idade Média, durante as Cruzadas, era comum achar hospices (espécie de hospedaria, em português) em monastérios, que abrigavam não somente os doentes e moribundos, mas também os famintos, mulheres em trabalho de parto, pobres e órfãos. Essa forma de hospitalidade tinha como característica o acolhimento, o alívio do sofrimento, mais do que a busca pela cura.

No mundo contemporâneo, o paliativismo vem associado ao nome de Cicely Saunders — médica, enfermeira, assistente social e escritora inglesa que decidiu abordar a morte como processo inerente à vida. Saunders dedicou sua vida ao alívio do sofrimento humano. Em 1967, fundou o St. Christopher’s Hospice, o primeiro serviço a oferecer cuidado integral ao paciente, desde o controle de sintomas, alívio da dor e do sofrimento psicológico. Até hoje, o St. Christopher’s é reconhecido como um dos principais serviços no mundo em cuidados paliativos e medicina paliativa. Saunders faleceu em 2005, em paz, sendo cuidada no St. Christopher’s.

Bardo Todöl

“Esta é a hora da morte e renascimento; aproveita esta morte temporal para atingir o perfeito estado; ilumina-te; concentrado na unidade de todos os seres vivos; mantido sob a luz clara; usa-o para alcançar o entendimento e o amor.”

No Oriente, a ideia de aceitar a morte é mais velha que as montanhas. O misterioso Bardo Todöl, — ou Livro Tibetano dos Mortos —, por exemplo, é fruto de uma tradição secreta e oral, passada de boca a ouvido ao longo do tempo. É dele que foi extraído o verso acima.

Para muitos ainda insondável, o livro afirma não apenas que existe vida após a morte, mas que é possível morrer de forma consciente e de um modo que seja proveitoso para o despertar espiritual — e oferece orientações para que se atinja um estado de aceitação e discernimento no momento da morte.

Em reedição recente, o professor budista tibetano Sogyal Rinpoche comenta, em uma releitura do Bardo Todöl: “Como budista, vejo a morte como um processo normal, uma realidade que aceito que ocorrerá enquanto permanecer nesta existência terrena. Sabendo que não posso escapar, não vejo motivo para me preocupar com isso. Costumo pensar na morte como trocar de roupa quando estão velhas e desgastadas, e não como um fim”.

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