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Brasil

Uso de ‘kit Covid’, sem eficácia comprovada, gera confronto entre médicos

Não existe medicamento com eficácia comprovada em nenhuma fase da doença do novo coronavírus, que já infectou mais de 12 milhões de pessoas no mundo

Redação Jornal de Brasília

10/07/2020 14h18

Cláudia Collucci
São Paulo, SP

A pandemia do novo coronavírus despertou um confronto entre médicos. De um lado os que defendem o tratamento de casos iniciais da Covid-19 com remédios sem comprovação de eficácia, como a cloroquina, a hidroxicloroquina associada ou não à azitromicina, a ivermectina, além de vitaminas, no que já é chamado de “kit Covid”. Do outro, profissionais que alegam não haver comprovação cientifica das medicações.

A polarização tem se acirrado com a defesa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que insiste no uso da hidroxicloroquina, antes e depois de divulgar na terça (7) que está com Covid-19.

Não existe medicamento com eficácia comprovada em nenhuma fase da doença do novo coronavírus, que já infectou mais de 12 milhões de pessoas no mundo.

A cidade de Florianópolis (SC) é o retrato da polarização em torno do “kit Covid”. Circulam na cidade dois manifestos médicos: um com 210 assinaturas de profissionais pedindo que os medicamentos sem eficácia comprovada sejam prescritos nas fases iniciais da doença, e outro, com 680 nomes (370 de SC e 310 de outros estados), não recomendando o uso das terapias na infecção pelo novo coronavírus.

O grupo favorável ao kit reconhece que não existem fortes evidências científicas sobre benefícios do tratamento precoce. “Mas esse momento exige que façamos o tratamento conforme o que temos de evidências disponíveis”, diz a carta em defesa do uso das medicações, que foi entregue ao governo do estado.

Já o grupo contrário, que tem entre os signatários associações de bioética, de virologia e de saúde coletiva, alerta que, além da falta de comprovação na Covid, o uso da hidroxicloroquina traz riscos de arritmias e parada cardíaca.

Lembra também que cerca de 80% das pessoas com a doença terão apenas sintomas leves e moderados, independentemente do tratamento prescrito no início da doença. A ideia do grupo é torná-lo um movimento nacional de resistência ao uso de terapias sem evidência durante a pandemia.

Após ser pressionado pelo grupo favorável ao “kit Covid” para tornar obrigatório o tratamento, o prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), alinhado com a decisão do CFM (Conselho Federal de Medicina), decidiu que os médicos do município terão autonomia na prescrição.

Segundo o infectologista Filipe Perini, que faz parte do comitê de enfrentamento à pandemia na capital catarinense, as únicas medidas comprovadamente eficazes são aquelas baseadas em testagem, identificação precoce dos infectados, isolamento e monitoramento deles, além de uma boa estrutura hospitalar para os casos graves.

“É a receita que tem funcionado no mundo todo. Se a gente tem pouco recurso, esse é o lugar que tem que colocar, não em medicações que não têm clareza de benefício e com potencial risco. Mesmo que seja barata [a cloroquina], não é só isso. São recursos humanos envolvidos, tempo, logística”, diz Perini.

Para ele, ao insistir na direção contrária das evidências, Bolsonaro acirra a tensão entre os médicos, pressiona gestores públicos e confunde a população.

“Será que ele está bem porque usou cloroquina ou porque 80% das pessoas vão ficar bem mesmo?”, questiona.

O Ministério da Saúde regulamentou o uso da hidroxicloroquina, mas hospitais como o Albert Einstein (SP) recomendam que os médicos não receitem a medicação. A orientação veio após o FDA (agência americana que regula os fármacos) ter revogado o uso para tratamento da Covid-19.

Segundo Perini, o negacionismo das evidências desestabiliza os estados e municípios que resistem em não adotar tratamentos não comprovados e, ao mesmo tempo, estimula outros a distribuir medicamentos até para uma suposta prevenção da doença. “É a extrapolação da extrapolação.”

Jurandir Frutuoso, secretário executivo do Conass (Conselho Nacional de Secretários da Saúde), diz que, desde o início da pandemia, esse confronto sobre o uso medicações sem evidência tem preocupado muito os gestores de saúde. “Seu maior dano foi embotar [enfraquecer] a discussão sobre o essencial na pandemia.”

Em Balneário Camburiú (SC), a mudança forçada do protocolo de tratamento pela prefeitura, que passou a incluir ivermectina, azitromicina e cloroquina, provocou a saída de pelo menos três médicos do comitê que coordena as ações de combate ao coronavírus na cidade. Eles se opuseram à decisão.

Em Itajaí (SC), a prefeitura começou nesta terça (7) a distribuir ivemerctina – remédio usado para sarna, piolho e alguns parasitas intestinais, como estrongiloides e oxiúros– como tratamento precoce e prevenção da Covid. A medida provocou manifestações contrárias de médicos.

O medicamento já custou R$ 4,4 milhões aos cofres públicos em compra emergencial e está sendo distribuído em um centro de eventos da cidade. Em dois dias, 9.000 pessoas haviam recebido a medicação.

Segundo o prefeito Volnei Morastoni (PMDB), uma equipe com cerca de 150 pessoas tem trabalhado todos os dias no preenchimento de cadastros de moradores, avaliações e dispensação do remédio.
“Estamos adotando [a ivermectina] como tratamento profilático para toda a população, já que ele diminui a multiplicação viral”, afirma.

Em Porto Alegre (RS), tem circulado um guia de tratamento da Covid, assinado por 18 médicos. No documento que leva o brasão gaúcho, são sugeridos associações de remédios de acordo com a fase da doença. Entre as drogas, estão a hidroxicloroquina, a cloroquina, a azitromicina e ivermectina, além de zinco, vitaminas C e D.

Em resposta, representantes de quatro sociedades médicas gaúchas (infectologia, reumatologia, terapia intensiva e medicina de família) enviaram ofício ao Conselho Regional de Medicina pedindo a apuração de eventual infração ética. “O documento se propõe a mimetizar um documento da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, gerando confusão entre médicos do estado”, diz.

Além disso, as entidades apontam como potencial infração ética a recomendação de intervenções terapêuticas que não possuem evidências de eficácia e segurança.

Na capital gaúcha, da lista sugerida pelo grupo, apenas a ivermectina está disponível na rede pública. Mas a orientação da Secretaria Municipal da Saúde é que seja prescrita apenas para tratamento de verminoses. Em nota técnica, a pasta alerta que a droga não tem eficácia comprovada na Covid-19.

“Mas mesmo assim as pessoas prescrevem. A gente tem visto um consumo grande nas nossas farmácias [públicas]. O médico tem autonomia mas tem responsabilidade sobre o que está prescrevendo”, afirma o secretário municipal da Saúde, Pablo Stürmer.

Para ele, não é surpresa ver profissionais assumindo condutas sem embasamento científico. “É um desafio mostrar que, às vezes, não fazer nada é proteger o paciente. Há uma cultura de intervir mesmo quando não sabe se funciona”, completa.

Estudo liderado pelo cardiologista Luis Claudio Correia e publicado no Journal of Evidence-Basead Health Care, vincudado à Escola Bahiana de Medicina, mostra que há um “efeito pandêmico” por trás dessas decisões médicas irracionais.

Foram ouvidos 370 médicos sobre a prescrição da hidroxicloroquina para Covid-19. A propensão em prescrevê-la foi alta, variou entre 37% a 89%, de acordo com a gravidade da doença.

“Isso representa uma fragilidade cognitiva de nossa sociedade. É utópico querer medicina baseada em evidências sem uma sociedade baseada em evidências. No fundo, as pessoas não são contra ciência, na verdade a sociedade não entende o que é ciência e seu papel do processo de tomada de decisão.”

As informações são da FolhaPress

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