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Quinto Ato
Quinto Ato

Somos apenas homens

Para Shakespeare: “Há um traço de natureza que torna todos os homens parentes”. Carlos Drummond de Andrade complementa: “Nós somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos”

Theófilo Silva

23/03/2023 5h00

Atualizada 22/03/2023 15h21

Reprodução

Jô Soares tinha um sonho, montar ‘Tróilo e Créssida’, uma das peças de Shakespeare que nunca foi exibida nos palcos do Brasil. A estreia deu-se em 2016 e ficou seis meses em cartaz. Foi um sucesso. O apresentador faleceu, mas teve seu sonho realizado.

‘Tróilo e Créssida’ é uma das peças de Shakespeare mais difíceis de serem montadas, são muitos personagens. Trata-se de uma tragicomédia ambientada na Guerra de Tróia. Não é uma peça com personagens que tenham a profundidade de um Hamlet, Cordélia, Otelo ou Macbeth. Shakespeare parece ter se preocupado mais em fazer reflexões sobre o comportamento dos homens no seu dia, suas relações de trabalho, e nos dizer o quanto nossos comportamentos podem interferir num empreendimento, qualquer que seja ele. Isso é óbvio, claro.

Mas é que em se tratando de Shakespeare, com sua infinita sabedoria, as falas dos personagens nos assustam de tão magníficas, pois trata-se de diálogos e observações que descrevem com precisão cirúrgica nossa personalidade. Diria que em nenhuma peça de Shakespeare isso ocorre como em ‘Tróilo e Créssida’. A figura central da peça chama-se Tersites, um tresloucado revoltado com a guerra que faz leituras extremamente cômicas e certeiras sobre a personalidade de seus companheiros. Ele nos faz rir o tempo todo com suas piadas e analises acerca de seus amigos e daqueles que os cercam. Tersites é uma espécie de consciência da peça. É essa frase que dá o tom da peça: “A amizade que não é unida pela sabedoria, pode perfeitamente ser separada pela loucura”.

Shakespeare parece ter tido a preocupação de mostrar o quanto a ambiguidade e o paradoxo podem compor o nosso “Eu”. Eu diria que convivemos com personalidades ambíguas todos os dias. E nessa época de pandemia, então! Pessoas que jamais imaginaríamos que adotassem um comportamento agressivo, tresloucado, irracional, nos surpreendem ao agir assim. Temos aí os atos antidemocráticos da última eleição presidencial para comprovar essa tese. Se bem que, aqui acolá pessoas orgulhosas nos surpreendam com gestos de simplicidade. Diria que dos chamados Sete Pecados Capitais, Gula, Avareza, Luxúria, Ira, Inveja, Preguiça e Soberba, os mais destruidores de ambientes comuns, e que precisamos enfrentar o tempo todo, são a preguiça e o orgulho. Esses dois afetos habitam o nosso cotidiano e na maioria das vezes contribuem para o fracasso de qualquer empreendimento em que estejamos envolvidos.

E é Ajax, ele mesmo um orgulhoso, que faz essa pergunta para um de seus amigos “Por que um homem deve ser orgulhoso? De onde vem o orgulho? Eu não sei o que seja o orgulho”. A que Agamenon inteligentemente responde: “O orgulhoso se devora si mesmo: o orgulho é seu próprio espelho, sua própria trombeta, sua própria crônica”. Olhemos a nossa volta! A soberba tem um poder de destruição violentíssimo. Mas é Alexandre quem faz uma leitura perfeita sobre a ambiguidade dos homens, quando descreve Ajax para Créssida: “Esse homem, senhora, roubou muitas qualidades características dos animais: é valente como o leão, grosseiro como o urso, lento como o elefante: é homem em quem a natureza armazenou tal variedade de temperamentos que seu valor é deformado pela loucura e a loucura temperada pela prudência. Não há virtude de que não tenha ele um reflexo; nem um vício de que não traga ele alguma mancha. É melancólico sem motivo e alegre contra todo o bom senso. Tem as articulações de todas as coisas, mas todas as coisas tão desarticuladas que é um molusco, tendo cem braços e não se servindo deles ou um Argos míope, tendo cem olhos e nada enxergando”. Digo que esse parágrafo sintetiza tudo aquilo que eu queria dizer aqui.


Para Shakespeare: “Há um traço de natureza que torna todos os homens parentes”. E é Carlos Drummond de Andrade quem complementa Shakespeare: “Nós somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos”.

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