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Quinto Ato
Quinto Ato

Megalomania inaceitável

Theófilo Silva

18/01/2024 15h17

Foto: Alain JOCARD / AFP

Em agosto de 1898, o Czar da Rússia, Nicolau II, surpreendeu o mundo ao propor uma conferência de desarmamento entre as grandes potências. Imediatamente um exército de pacifistas apresentou-se e começou a trabalhar pela paz. Os mais aguerridos foram a baronesa Von Suttner e o brilhante e famoso jornalista William Thomas Stead.

A Europa vivia a chamada Belle Époque, um período de paz e prosperidade, que começou em 1871 e que duraria até 1914. Havia uma crença na virada do século XIX de que a humanidade chegara ao ápice de suas realizações e que tudo de bom já fora inventado. Afinal, tínhamos fonógrafo, automóvel, telefone, máquina de costura e de escrever, bicicleta e outros confortos modernos. No entanto, uma ameaça ocorria, a corrida armamentista estava desenfreada e as indústrias de armamentos fabricavam armas cada vez mais mortíferas. Era, portanto, necessário dar um fim a essa loucura da guerra. Mas muitos estavam convencidos que “a era das guerras tinha passado”.
William T. Stead era um vulcão, tal sua competência, capacidade de trabalho, vasto conhecimento, relações pessoais com poderosos, sendo respeitado em toda a Europa. Meteu-se em todas as grandes causas de sua época. Quando soube da oferta do Czar da Rússia, foi a sua procura, bem como de outros chefes de estado, junto com a baronesa Von Suttner, com o objetivo de promover uma conferência de paz. Em seu encontro com Nicolau II, “o príncipe da paz”, Stead achou-o encantador, lúcido, determinado e com larga compreensão dos problemas mundiais. Daí, iniciou a sua Cruzada Internacional da Paz.

Outro que se juntou ao grupo, doando, inclusive, o majestoso prédio para a conferência, foi o bilionário americano Andrew Carnegie, que logo tratou de procurar o “Senhor da guerra” o Kaiser da Alemanha, Guilherme II, enquanto a baronesa se encontrava com o presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, “o homem do porrete”. Carnegie queria transformar o Kaiser em Pacificador. E achou-o maravilhoso, sincero “alguém em que se pode acreditar” e saiu de lá convicto que o transformara em “apóstolo da paz”.

A primeira Conferência da Paz ocorreu em 1899, e a segunda em 1907, em Haia — foi onde nosso Ruy Barbosa transformou-se em Águia de Haia, com o apoio de Stead — a pequena cidade da neutra Holanda. A terceira seria em 1915. O otimismo era grande. Em 1905, o jovem escritor austríaco Stefan Zweig declarou: “falta muito pouco para que os últimos vestígios do mal e da violência sejam definitivamente extintos”. Encontros de pacifistas se multiplicaram pelo mundo, e nunca se falou tanto de paz.

Na Inglaterra, um grupo de artistas e intelectuais pacifistas, denominados Os Apóstolos, liderados pelos escritores Lytton Strachey e E. M. Foster – Keynes e Bertrand Russel pularam fora cedo – dedicaram-se durante as três primeiras décadas do século XX a boicotar e desmoralizar o alistamento militar e o governo britânico, declarando que: “entre trair meu amigo e o país, espero ter a coragem de trair o meu país”.

O resto da história é tragédia. A consequência de tudo isso é que tivemos a maior carnificina de todos os tempos, culminado em duas guerras mundiais que ceifaram mais de 80 milhões de vidas e produziram sofrimentos e prejuízos irreparáveis à humanidade. A luta dos pacifistas, embora dessem frutos 40 anos depois, contribuiu muito para as desgraças que se seguiram. Sabemos hoje que o Czar, o príncipe da paz, era um autocrata preguiçoso e incompetente, que detestava o exercício de governo e propôs a conferência em função da extrema fragilidade da Rússia. Tanto que em 1917 estourou a Revolução Bolchevique.

Quando vejo boa parte da humanidade dando crédito a Elon Musk, o bilionário megalomaníaco, com toques de psicopatia, um dos pais da chamada I.A, Inteligência Artificial, que está instalando chips na cabeça, no cérebro das pessoas, para transforma-las em robôs, e, assim, “mudar o mundo para melhor”, fico estupefato. Mundo melhor coisa nenhuma, ele está criando mais hackers, esses monstros da modernidade — ameaçando a segurança da humanidade — se metendo em assuntos que deveriam ficar com Estado, com as Universidades, com aqueles que foram preparados para fazê-lo. Infelizmente, isso me faz recordar das ações dos “apóstolos da paz”, que embora fossem pessoas de caráter e bem intencionadas, cometeram um erro terrível.

Assim, ao falar de Musk, não deixo de lembrar a sentença de Shakespeare em “O Mercador de Veneza”: “O diabo pode citar as escrituras quando isso lhe convém”.

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