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Quinto Ato
Quinto Ato

A Flauta maligna

Cada vez mais a sabedoria de Shakespeare me assusta, tal sua criatividade, abrangência e concatenação de fatos e ideias.

Theófilo Silva

29/06/2021 17h27

A Flauta maligna

O longo trecho abaixo, que faço questão de citar, é o prólogo da peça Henrique IV – parte dois, escrita em 1596, quando o bardo tinha apenas 32 anos de idade. A sentença é tão direta, tão acurada, que diz absolutamente tudo a respeito da responsável pela segunda maior desgraça que estamos enfrentando nos tempos que correm, as fake news. A primeira é a pandemia, claro. Trata-se das famigeradas notícias falsas, os boatos, as mentiras, os rumores que abundam nas redes sociais e em todas as mídias existentes no mundo. Essa passagem é realizada na abertura da peça, e denominada de O Rumor, apresentada e interpretada no teatro por um ator falando na primeira pessoa. Vejam que maravilha de texto, e quão atual ele é:

“Abram seus ouvidos! Pois quem ousaria bloqueá-los quando o Rumor fala alto? Eu faço do vento meu cavalo e cavalgo do oriente ao ocidente, descrevendo os eventos na esfera terrestre. De minhas línguas escapam contínuas calúnias que expresso em todos os idiomas, enchendo os ouvidos dos homens com mentiras. Falo de paz, enquanto a hostilidade secreta dilacera o mundo, debaixo do sorriso da tranquilidade. E quem além do “Rumor” – quem além de mim – pode fazer exércitos preparar defesas ansiosas, quando na verdade o mundo está inquieto por outras razões e não há guerra chegando? O boato é como uma Flauta em que sopram as suspeitas, as invejas, as calúnias, são o sopro que o faz soar, e é tão simples e fácil de tocar que até mesmo as massas, a multidão – aquele monstro sombrio com inúmeras cabeças eternamente discordante e vacilante – pode fazê-la ressoar”.

Durante o período em que a peça Henrique IV foi escrita, a Inglaterra sofria uma ameaça constante de invasão por parte da Espanha, depois que, em 1588, a chamada Invencível Armada foi derrotada pelas forças inglesas nas costas do Canal da Mancha. Depois isso, os ingleses ficaram temerosos que os espanhóis retomassem o ataque. Isso foi a senha para que os perversos lançassem mão de boatos constantes, alardeando que navios invasores se aproximavam novamente, causando um caos enorme em Londres e outras cidades inglesas. Por conta disso, o governo tinha de evacuar as cidades e recrutar um exército para repelir os invasores. Isso destruía a economia, já que os artesãos, feirantes, mercadores, trabalhadores em geral tinham que abandonar seus afazeres e se alistarem para defender a nação, paralisando a cadeia produtiva, transformando a vida do povo num inferno.

“Os invasores estão chegando”, “Eles já aportaram em Dover”, “Liverpool foi saqueada”, “A Rainha foi assassinada” e muitos e muitos outros alarmes falsos eram proclamados de forma sistemática, acabando com os nervos dos ingleses. Era tudo mentira, tudo boato, tudo fake news. A Inglaterra nunca foi invadida.

Portanto, essa moda perversa não é coisa nova, vem desde o começo do mundo, os homens sempre foram levianos e mentirosos. Só que nos dias que correm, em que tudo é visto e vigiado pela tecnologia, não deveríamos mais ser vítimas de Rumores. Infelizmente, essa crueldade está de volta. Nunca se espalhou tantos boatos como agora, senão vejamos: a polícia de Brasília recebeu mais de mil alarmes falsos sobre Lázaro, o psicopata assassino que acabou de ser morto. Boatos sobre a pandemia de Covid, envolvendo medicamentos, vacinas e máscaras espalham medo e morte todos os dias. Perfis falsos de homens públicos, artistas, nações, pessoas comuns acontecem o tempo todo nas redes sociais. A coisa ficou tão séria que a imprensa precisou criar um espaço em seus veículos para desmontar diariamente essas calúnias.

Como enfrentar isso? Cadeia neles é a resposta! Educação, leitura, conhecimento são outra forma de combate. As fake news atingem em cheio as massas iletradas “Esse monstro sombrio de inúmeras cabeças discordantes e vacilantes que as fazem soar”. Essa flauta maligna precisa ser silenciada, e logo. Com a palavra, o poder judiciário!

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