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Quinto Ato
Quinto Ato

A metáfora das calçadas

Calçadas deveriam ser bem feitas, modeladas, inteiras, mas pouquíssimas são assim. O mesmo acontece com nossas leis

Theófilo Silva

08/06/2023 5h00

Atualizada 07/06/2023 9h59

Foto: Valter Camapanato/Agência Brasil

Algo difícil de encontrar no Brasil é uma calçada bem feita, acabada, modelada, inteira, que complemente de forma elegante e funcional uma casa, um prédio comercial ou residencial, ou mesmo um mero terreno. No geral, nossas calçadas são tomadas por arbustos e apresentam pequenos buracos e remendos, têm marcas de pegadas (feitas por alguém quando cimento estava fresco), contêm água e/ou lama escorrendo, elevações, sujeira, um cantinho não cimentado e várias outras coisinhas que impedem que as consideremos terminadas. As calçadas no Brasil são uma metáfora do inacabado e do malfeito no país.

Todos nós usamos calçadas. Precisamos delas, pois oferecem segurança ao nos separar das ruas e avenidas. Mesmo aqueles que só andam de automóvel usam as calçadas para fazer caminhadas ou corridas. Quando andamos nelas, temos a certeza de que não seremos atropelados, e que qualquer tipo de veículo que venha a invadir, mesmo as bicicletas, estará infringindo a lei, sendo passível de punição. E uma calçada certinha, bem feita, é agradável de ver. Mas pouquíssimas são assim.

Pois saiba que, no Brasil, quase tudo é feito como são feitas as calçadas. Inacabadas, com furos, incompletas e cheias de defeitos. Assim é a Constituição, o Código Penal, o Código Civil, as leis, os contratos e quase todos os documentos que regem a grande nação brasileira. A diferença é que não vemos as imperfeições e os remendos, por se tratar de algo impresso em papel, escrito em linguagem jurídica, hermética, impenetrável para a maioria do povo. Só um pequenino grupo, em torno de 5% da população, tem conhecimento disso. E essa minúscula fração é quem controla tudo — e ela quer que as coisas sejam assim, pois somente com esses furos elas podem manipular e dominar os outros 95% da sociedade.

Dessa forma, fica parecendo a esse restante que nossa Constituição é a melhor do mundo, nossos códigos são severos, que todos são iguais perante a lei e blá, blá, blá. Nas escolas de Direito – já são centenas delas, talvez o Brasil tenha mais que Europa e Estados Unidos juntos – os futuros intérpretes, guardiães e defensores da Carta Magna, advogados, juízes, promotores, notários, tabeliães, vão aprender como fazer uso dessas obras que vão resguardar o Estado Democrático de Direito, a condição moderna que rege uma nação desenvolvida, que resguarda os direitos dos cidadãos. Lá, eles aprendem sobre a severidade das leis que são criadas pelo Poder Legislativo (deputados e senadores) e que serão aplicadas por eles.

Os futuros advogados, em sua maioria, saem de lá confiantes de que todos aqueles documentos que eles estudaram, decifraram e decoraram serão os instrumentos que lhes permitirão criar uma sociedade justa, uma nação onde a justiça prevalecerá, em que todos são iguais perante a lei.

Tudo balela. Logo eles descobrirão que tudo não passa de ficção. Rapidamente eles verão que os documentos “magnos” são cheios de brechas, que foram mal escritos, não terminados, confusos, deixando lacunas que permitem interpretações diversas, num misto de má intenção, frouxidão e desleixo, que gerarão confusão quando de sua aplicação. Ou seja, as leis brasileiras são como as calçadas construídas no Brasil: inacabadas e cheias de buracos e remendos.

Tudo isso não é apenas culpa do Estado ou do governo, é reflexo de uma sociedade leniente, de um povo confuso que não termina as coisas que começa, ou as faz mal feitas. É fruto da preguiça, desonestidade e mesmo sem-vergonhice, de uma sociedade, de uma elite, acostumado à cultura do jeitinho, de querer levar vantagem em tudo. Sempre querendo uma sobra, ganhar um pouco mais daquilo que foi combinado ou contratado. Poucos dão retoque nas obras que realizam. Em tudo predomina a cultura do “se dar bem”. Toda essa situação leva aos enormes problemas que o Brasil enfrenta quando se trata de por o Estado para funcionar. As coisas não terminam. Não acabam. Só encontram um fim quando é para contemplar os privilegiados e punir os desafortunados. Segue-se daí essa imensa confusão que é o Brasil, o país do futuro que nunca chega.

Lembro de um personagem de Shakespeare dizendo que “Tudo que é remendado, continua emendado e não passa de um remendão”? É assim que as coisas são no Brasil, um remendão. Até quando?

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