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Questão de Direito
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2020: tragédia ou oportunidade?

A pandemia testou de uma forma quase darwiniana nossa capacidade de adaptação. 2020 se mostrou um ano fora de série no quesito surpresa.

Marilene Carneiro Matos

19/11/2021 9h09

2020: tragédia ou oportunidade?

O ano de 2020 começou como todos os anos: fogos, promessas, lista de desejos. Ceia, cores e abraços. Apesar da falta de lógica nas expectativas e crenças que sempre acompanham esse período, sempre achei positivo a gente ter essa espécie de encontro marcado com a esperança e a promessa de que virão tempos melhores. Por mais que façamos lista de prioridades neste período, sempre algo sai do nosso roteiro ao longo do ano, sempre seremos surpreendidos pelos acontecimentos. Mas o ano de 2020 se mostrou um ano fora de série no quesito surpresa.

Os primeiros rumores sobre a chegada do novo vírus em “terras brasilis” se deu já em dezembro de 2020, mas foi após o carnaval que a notícia ganhou mais ares de concretude. Vimos surgirem então reações extremadas em um e outro sentido: uns apavorados, outros incrédulos. Pouco tempo após o primeiro paciente diagnosticado em São Paulo, um caso em Brasília, minha cidade, provocou algo que seria uma constante durante toda a pandemia: a discussão sobre os limites dos poderes do Estado na imposição de medidas restritivas aos cidadãos para conter a propagação da COVID-19, já que o cônjuge da primeira diagnosticada na Capital Federal somente se submeteu ao exame para detecção da doença e se recolheu em isolamento após decisão judicial que determinou de forma compulsória tais medidas.

A partir de então, a epidemia declarada aos 11 de março de 2020 pela OMS, provocou uma verdadeira revolução na rotina das pessoas em geral. Era o começo de um novo tempo para todos. Esse começo de pandemia foi marcado por consultas constantes e neuróticas aos noticiários quanto aos números de mortos e infectados, nas leituras ansiosas de dados e mais dados sobre o vírus. Período de incertezas, de angústias, de adaptações. O ano já despontava sendo marcado por um enorme desafio a ser enfrentado.

A primeira medida de peso dentro dessas novas circunstâncias, as medidas de isolamento – produziram a nível psicológico, financeiro e laboral uma necessidade extraordinária de adaptação por parte de todos. A insegurança decorrente das poucas informações até então disponíveis quanto aos reais impactos da pandemia levaria alguns a estados de pânicos e medos incontornáveis. Infelizmente tais medos se concretizaram para muitas pessoas, pelo elevado número de infectados e mortos, e pelos efeitos imediatos e cruéis sobre a economia e o consumo, que provocaram fome, fechamento de empresas e alta no desemprego.
Dentro deste contexto das medidas restritivas, assomou-se a predominância de uma forma de trabalho que seria adotada durante quase todo o período: o trabalho remoto, o home office. A nova forma de trabalhar foi adotada no âmbito das empresas, dos órgãos públicos, das escolas e faculdades. O trabalho remoto viria impactar em uma das relações sociais mais importantes para o ser humano: aquelas construídas pela camaradagem que circunda o ambiente corporativo.

É intuitivo o caráter socializante do trabalho: mais que meramente constituir meio de subsistência, o trabalho promove o relacionamento social e o surgimento de vínculos em decorrência do trabalho em equipe. Não é à-toa que a pirâmide de Maslow considera a necessidade de reconhecimento como uma das necessidades mais importantes dos seres humanos. Ocorre que ainda estamos inseridos em uma forma de socialização corporativa que passa pela interação da presença física, o que fez com que a pandemia demandasse que este aspecto passasse a ser (re) construído no âmbito das interações virtuais.

A pandemia testou de uma forma quase darwiniana a capacidade de adaptação do ser humano: os mais adaptáveis foram certamente os mais beneficiados ou pelos menos os menos prejudicados por tantas novidades e em tantos âmbitos distintos da existência humana. Nesse sentido, se por um lado a pandemia retirou o convívio presencial com os companheiros do labor, propiciou economia de tempo – e tempo é energia – e possibilidades de incrementar as relações por meio virtual. Quem não se lembra da explosão de lives que passaram a ocorrer diariamente nas várias redes sociais e os webinars que propiciaram tão ricos intercâmbios de ideias de forma tão prática e acessível?

Ademais, no quesito relações, a COVID-19 trouxe possibilidades nunca antes vistas de incremento nas relações familiares. Pais workaholics que quase nunca viam os filhos, passaram a desfrutar das refeições em conjunto. Cônjuges de 4 horas diárias passaram a enfrentar a dor e a delícia de convivências bem mais alargadas. Os avós começaram a despertar olhares mais cuidadosos dos membros da família. Quem soube se adaptar ao momento e colher os frutos da convivência compulsória da pandemia com certeza se sente agora muito mais pleno nas relações com os entes mais próximos. Talvez, outra oportunidade como esta não mais se repita.

O período desmascarou a falácia da eficiência do trabalho realizado unicamente em espaços corporativos como se toda e qualquer produção de qualidade tivesse como pressuposto um controle e vigilância quase infantil dos seus autores, concretizada pelo olhar atento dos chefes de setor e máquinas controladoras de ponto. A aferição da qualidade do trabalho a partir da contabilização em horas de presença física na sala de trabalho foi substituída por avaliação das entregas efetivas que o trabalhador realmente fizer acontecer. Passou-se a valorizar a capacidade de realização, ao invés da mera presença física do trabalhador. Será o início de um novo modelo de trabalho, uma era “a la Domenico Di Masi”, na qual a maioria dos trabalhos são realizados em um ambiente lúdico, em um parque, um quintal, no sofá de casa vendo as crianças brincarem na varanda? A conferir.

Se o trabalho remoto obrigou a uma nova adaptação com foco na produção, trouxe consigo o ensino à distância que constituiu na maioria dos casos uma oportunidade e um alívio para o ensino adulto, já que uma pós-graduação, por exemplo, passou a ser possível independente de qual parte do país ou do globo se encontre o estudante. Já no ensino básico e médio, constituiu, com raras exceções, um fato de stress e de perdas no aprendizado. Em outra mão, o ensino remoto trouxe mais proximidade dos pais ao universo escolar dos seus filhos, bem como propiciou um fortalecimento dos vínculos pela participação nas atividades.

A pandemia nos mostrou a necessidade de sermos flexíveis, de nos adaptarmos a situações novas, de enxergamos as situações sob outros pontos de vista. Se a pandemia constituiu uma tragédia grega, repleta de dramas e perdas pessoais e materiais, foi também uma oportunidade quase divina de novos ares e de novos pensamentos e sentimentos. A pandemia trouxe consigo a oportunidade de conciliação de cada um consigo mesmo, a partir do contato com seu interior amplificada pela diminuição do contato com o mundo exterior. Quem não tinha um bom relacionamento consigo mesmo foi ofertada uma oportunidade imperdível de conciliação. Passamos a “ter que ser” a nossa melhor companhia.

A diminuição drástica das relações sociais e de trabalho, a ausência de festas, encontros e comemorações, teve um outro efeito colateral: a diminuição do consumo. Além daquele consumo diretamente relacionado ao trabalho presencial (gasolina, cafés, restaurantes), observou-se também impacto significativo no consumo que indiretamente deriva das relações, o consumo que não se justifica para e pelo próprio usuário, mas sim “diante do outro” ou para “desfilar para o outro”. Vimos que talvez a maioria dos produtos que consumimos tenha como motivador o outro, não se dão a partir de uma necessidade própria.

Entendo a pandemia como o maior motivador do crescimento pessoal que tive oportunidade de presenciar em toda a minha vida. Como o maior incentivador para que eu treine a capacidade de experimentar novas formas de pensar e sentir o mundo, as relações, o trabalho e a mim mesma. Para desenvolver a resiliência diante do novo, do desconhecido. O maior encontro com meu interior que a vida me proporcionou. A chance única de interagir em outros moldes com minha família e amigos. A oportunidade de ouro de descartar tudo o que não seja importante, abrindo espaço para o que realmente irá de alguma forma me engrandecer e agregar valor como ser humano.

A pandemia trouxe também uma dura constatação: o povo brasileiro é um dos menos amadurecidos no mundo no quesito cidadania. Primados básicos do contrato social mostraram-se ininteligíveis para mais pessoas do que sonhava a nossa vã filosofia. Mais do que a politização de uma pandemia, a crise trouxe à tona o caráter pouco republicano e de consciência coletiva do país, caracterizado por frases tais como: “e meu direito de ir e vir? ”; “fica em casa quem quer, cada um que cuide de sua vida”; “usa a máscara quem quer”; “prefeito ditador”, “vacina quem quer”, dentre muitas outras.

A mesma jovem que pedia orações pela avó entubada com COVID-19 era a que semanas antes postava em plena aglomeração e curtição da vida nas redes sociais. O mesmo paciente que ia correndo procurar atendimento médico e ocupar uma vaga na UTI era o que se recusava a manter um mínimo de isolamento, criticando as medidas restritivas como se fossem condutas de Estado de exceção.

De repente, não mais que de repente, o velho poder de polícia que aprendemos na faculdade, que é um dos pressupostos de constituição do próprio Estado, já que apoiado na supremacia do interesse público sobre o particular, em que cada um abre mão da sua liberdade individual em prol do bem-estar coletivo e da segurança propiciada pela vida em sociedade, passou a constituir um absurdo na ótica de boa parcela da população e mesmo de alguns gestores políticos. Será o triunfo final do individualismo?

Finalizo dizendo que talvez até mesmo esta constatação da pouca cidadania dos nossos cidadãos seja positiva. Afinal, este cidadão analfabeto em termos de civilidade já existia, apenas não havia sido exposto à plena luz do dia. Só se tem chance de se mudar o que se conhece. Será esta nossa chance?

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