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Questão de Direito
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O gestor “apressado” para aplicar penalidades e as garantias do servidor público

Prefeito de cidade do interior do país, recém-empossado no cargo passa um “pente-fino” nas pendências

Marilene Carneiro Matos

04/05/2022 18h14

Atualizada 09/05/2022 11h24

Prefeito de cidade do interior do país, recém-empossado no cargo passa um “pente-fino” nas pendências e tem notícias de que determinado servidor participou de um superfaturamento de uma licitação, sem que houvessem sido tomadas providências. Os técnicos lhe apresentam muitos documentos que provariam a ação ilícita do servidor, bem como print de tela de suas redes sociais, que mostraram um estilo de vida muito melhor do que lhe permitiriam sua remuneração funcional.

Por achar que as prova já eram “mais que suficientes”, o Prefeito apressadamente resolveu aplicar a penalidade que a lei previa para a conduta em espécie, demitindo o servidor, por vislumbrar que estava incurso no ilícito de improbidade administrativa. Ou seja, gestor entendeu que era desnecessário apurar os fatos por meio de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), já que o material probatório que ele tinha em mãos não lhe deixava qualquer dúvida na mente sobre a conduta do servidor.

Ocorre que o servidor, que tinha formação jurídica e conhecia tanto a lei quanto a jurisprudência sobre o assunto, ingressou na Justiça com uma ação anulatória e conseguiu a reintegração no cargo, bem como a condenação do município ao pagamento de todas as verbas, como se no exercício do cargo estivesse. Resultado: o município teve que readmitir o servidor e ainda lhe pagar as verbas salariais

Correspondentes corrigidas e com juros, o que gerou um débito de cerca de 02 (dois) milhões de reais.
Ademais, o servidor denunciou o gestor ao Ministério Público pelo crime de prevaricação definido pelo Código Penal como a conduta de “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, bem como pela conduta de Improbidade Administrativa, na modalidade de conduta que provoca prejuízo ao erário.
Essa situação, por mais esdrúxula que pareça aos conhecedores dos postulados do Direito Administrativo Sancionador, não é assim tão incomum nos rincões do país, principalmente naquelas localidades sem estrutura de pessoal, com assessorias jurídicas precárias ou mesmo desprovidas de pessoal capacitado em Processo Administrativo Disciplinar.

De fato, o PAD constitui pressuposto imprescindível à aplicação de sanções aos servidores públicos das Administrações Diretas e Indiretas, em todas as esferas federativas do país, vez que se trata de instrumento da Administração Pública por meio do qual se cumprem duas finalidades: a) apurar a prática de irregularidades funcionais e b) oportunizar aos acusados na seara administrativa o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Por constituir Poder-dever da Administração, o Poder Disciplinar é de exercício obrigatório dos agentes públicos. Ou seja, a autoridade que tem notícias de indício de cometimento de ilícitos por parte dos agentes públicos não pode se furtar à tomada de providências cabíveis para apurar todas as circunstâncias do fato, sob pena de vir até mesmo a ser incursa no crime de condescendência criminosa, além de ilícito funcional.

Em outra mão, o PAD não tem como objetivo aplicar penalidades aos servidores, mas sim efetivamente apurar a ocorrência ou não de ilícitos funcionais. Por isso mesmo, os agentes que venham a compor Comissão de Processo Disciplinar não devem começar os trabalhos partindo do pressuposto de que realmente ocorreu ilícito, mas sim de que há indícios que reclamam apuração. Neste sentido, para garantir que não haja juízos preconcebidos por parte dos integrantes do PAD, a Lei do Processo Administrativo Federal coloca como hipóteses de impedimento à participação em Comissão Disciplinar o agente que tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante.

Na apuração de ilícitos, tendo o investigado a condição de acusado, a Carta Constitucional obriga que lhe sejam concedidos o contraditório e a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes. É justamente uma das funções primordiais do PAD: garantir que antes da eventual aplicação de sanções, o acusado tenha a oportunidade de se defender, apresentando sua versão dos fatos, opondo eventuais justificativas, arrolando testemunhas, formulando quesitos, apresentado laudos periciais e todas as formas em direito admitidas.

Tal garantia é ínsita ao Estado de Direito e configura uma inescapável evolução do Estado, uma conquista da Revolução Francesa, que originou a Primeira Geração de Direitos Fundamentais, aquela classe de Direitos que colocavam limites à intervenção do Estado nos Direitos Individuais, expressas no Princípio da Legalidade, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou não fazer alguma coisa se não em virtude de lei”, bem como “os litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Desta forma, a aplicação de sanções disciplinares, sem a prévia oportunidade de contraditório e ampla defesa, atinge garantias fundamentais do cidadão e por isso coloca o gestor em situação de responder pelo ato ilegal. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de dispositivo de Lei do Estado do Amazonas, que previa a possibilidade de aplicação de sanções de “forma imediata”:
“art. 43 – São penas disciplinares:

§ 2º – As penas de repreensão e suspensão, até cinco dias, serão aplicadas de imediato pela autoridade que tiver conhecimento direto de falta cometida.”

No caso, a Corte entendeu que o diploma legislativo representava ato de direta violação a um dogma fundamental, impregnado de universalidade, transcendentalidade e historicidade, consagrado nos mais diversos estatutos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (arts. X e XI), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14, n. 3), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, § 2º, “b” e “c”), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 48, n. 2), a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (art. 6º, n. 3) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos/Carta de Banjul (art. 7º, n. 1), os quais proclamaram que ninguém será privado de seus direitos, nem mesmo punido, ainda que com sanções de menor gravidade, sem que se lhe assegure o direito de se defender previamente.

No que toca à responsabilidade do gestor pela demissão desprovida de prévio processo disciplinar, há pontos que merecem análise a fim de se perquirir a extensão do elemento subjetivo da conduta – dolo ou culpa do Prefeito. Se configurada a existência de dolo, ou seja, a prática do ato demissional irregular de forma intencional, como dito antes, pode-se aventar a possibilidade de responsabilização nas esferas administrativa e criminal. Na hipótese de se tratar de culpa, o gestor que assim atua por desconhecimento jurídico ou levado a erro por sua assessoria, há que se ter em conta que o art.28 da Lei 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às normas Brasileiras, determina que o agente público responderá por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

Ou seja, para que o gestor responda pelo ato ilegal que emitiu a partir de ignorância ou desconhecimento da norma, entrará na equação se tal erro é grosseiro, inescusável. Em tal análise deverá ser levada em conta as condições do gestor, tais como grau de instrução, disponibilidade de assessoria, dentre outras.

De qualquer sorte, trata-se de falha no exercício do Poder Disciplinar, o qual foi exercido com inadmissível desconsideração das garantias fundamentais. E neste caso, o erro provocou verdadeiro prejuízo ao erário, vez que o Município teve que readmitir e indenizar em vultosa quantia o servidor demitido ilegalmente, ao mesmo tempo em que teve que arcar com a remuneração do agente que o substituiu durante o tempo em que esteve afastado.

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