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Psicanálise da vida cotidiana
Psicanálise da vida cotidiana

O sentido existencial de uma mudança

A condição de uma mudança nunca é perfeita, pois ela nunca tem fim e sempre será o paradoxo de um estranhamento e de uma alegria de nosso mundo interno e externo no corpo e na alma de um ser humano

Carlos de Almeida Vieira

27/12/2023 10h53

Foto: Daria Obymaha/Pexels

  • Heráclito, o filósofo do “vir-a-ser”, deixou para a aprendizagem do viver: que não se toma banho no mesmo rio toda vez que se mergulha. A trajetória durante a vida é feita sempre de experiências inéditas e não repetitivas, quando se quer crescer, desenvolver e aprimorar a beleza da existência;
  • Clarice Lispector escreveu em sua “Paixão” que a vida se torna mais leve quando se troca “o destino pela probabilidade”;
  • Eliane Fittipaldi, em seu ensaio sobre “Adolescentes de Clarice nos caminhos turbulentos do feminino” (eu acrescentaria também do masculino), deixa implícita a ideia que as veredas das várias épocas do trânsito humano pela vida são sempre estados adolescentes em qualquer idade cronológica que se tenha. Assim como deve-se ler durante toda a vida a capacidade sana das brincadeiras infantis, os estados adolescentes (estados que favorecem a continuação da subjetivação infinda) são movimentos psíquicos de desafio, amor e medo à liberdade, diante dos desajustes e novos ajustes imprescindíveis para desenvolver crescimento psíquico.

Mudanças são movimentos que desestabilizam a ordem anterior, abrem um espaço não vivido para o novo e exigem do ser humano não uma continuação predestinada, mas uma organização inédita e viva. Óbvio que isso traz angústias, conflitos, movimentos de ambivalência, receio, medo. Outro vértice há que se considerar: o aparecimento do novo, ainda que estranho, quando escreve Eliane: “… refere-se a uma complexa fase de transformação do sujeito: é quando ocorre o estranhamento, a angústia em relação ao corpo em mudança e ao aumento da libido, quando se processa o luto do corpo da infância que se está perdendo — o corpo do narcisismo parental”. Claro que a autora está se referindo à adolescência, mas quero crer que esse movimento de lutos prossegue em todas as etapas da vida. Refiro-me aqui a uma experiência também na terceira idade. O personagem dessa crônica faz uma verdadeira revolução em sua vida após ousar viver o novo ao contrário de prosseguir tomando banho “no mesmo rio”.

Num fragmento clariciano, encontra-se uma bela metáfora que transcrevo:

Aniversário
“Amanhã faço dez anos. Vou aproveitar bem esse último dia de nove anos.
Pausa, tristeza:
-Mamãe, minha alma não tem dez anos.
-Quanto tem?
-Só uns oito.
-Não faz mal, é assim mesmo.
-Mas eu acho que se devia contar os anos pela alma.
A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma.
E o cara tinha morrido, mas era com setenta anos de corpo”.

Meu personagem não deseja morrer com dezenas de anos de corpo. Meu personagem quer viver até morrer com anos de “alma”, de riqueza interna, de amorosidade compartilhada, de probabilidades ricas de liberdade e de experiências criadoras.

A mudança é análoga à experiência que se tem após um naufrágio: algumas coisas ficam e devem ficar soterradas no fundo do mar; outras chegam à superfície, e é com essas que se pode nadar até a praia e ressuscitar para uma vida nova onde algumas memórias permaneçam esquecidas (como defesa sana) e outras possam contribuir para um constante vir-a-ser. A experiência vivida é que vai construindo a essência, e não o contrário. Esse foi e será o aprendizado dos filósofos existencialistas, leia-se a obra bela e profunda de Albert Camus em seu intrigante e profundo livro, “O Homem Revoltado”.

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