Entre potes cor-de-rosa e vídeos de skincare, cresce uma geração que aprendeu a se olhar antes de se conhecer. O fenômeno Sephora Kids expõe como o marketing, as redes sociais e a estética do “autocuidado” transformaram a infância em mercado e o amor-próprio em performance.
O que era para ser apenas um encontro sobre “rotina de cuidados” virou um megashow. Em 6 de setembro de 2025, mais de 80 mil crianças, pré-adolescentes e pais lotaram o American Dream Mall, em Nova Jersey, para o lançamento da loja pop-up da Sincerely Yours, marca de skincare criada pela influenciadora Salish Matter, de 15 anos, ao lado do pai, o criador Jordan Matter. A multidão acampou de madrugada, superlotou corredores, exigiu controle policial e gerou críticas pela desorganização. Ao mesmo tempo, os produtos esgotaram nas lojas da Sephora, consolidando um marco comercial da creator economy voltada à beleza infantil.
O que é, afinal, “Sephora Kids”
O termo Sephora Kids se popularizou nas redes e na imprensa internacional para designar crianças e pré-adolescentes que consomem produtos de beleza sofisticados — limpadores, séruns, máscaras e maquiagens leves — e frequentam lojas especializadas com o comportamento de consumidores adultos.
Reportagens da Vogue Business e do Cosmetics Business mostram que o público da beleza cresce em faixas etárias cada vez mais jovens e que essa tendência não dá sinais de desaceleração.
Essas crianças testam produtos, repetem rotinas complexas e falam com naturalidade sobre ingredientes dermatológicos. O que antes era uma brincadeira de imitar os pais se tornou um mercado bilionário, amplificado pela internet.
TikTok, GRWM e a publicidade disfarçada de afeto
O TikTok é o motor dessa tendência. Vídeos de Get Ready With Me (GRWM) ensinam rotinas com muitos passos, preços elevados e sobreposição de ativos. Um estudo da Northwestern Medicine revelou que essas rotinas custam, em média, US$ 168 por mês e raramente incluem protetor solar — expondo peles jovens a produtos sem benefício clínico comprovado.
Investigações da CBS News apontaram a presença de ingredientes anti-idade em conteúdos voltados a menores, além da baixa sinalização publicitária, o que confunde entretenimento com propaganda — especialmente entre crianças sem repertório crítico formado. O mesmo estudo menciona projetos de lei na Califórnia que buscam restringir a venda de certos ativos para menores.
Em entrevista ao Meio & Mensagem, Maria Mello, líder do Eixo Digital do Alana, grupo que atua por um mundo melhor para as crianças, classifica o fenômeno como uma forma de adultização precoce:
“O fascínio das ‘Sephora Kids’ não nasce espontaneamente. É resultado da exposição precoce a conteúdos com apelo comercial, muitas vezes disfarçados de tendências. Crianças e adolescentes acompanham influenciadores e buscam reproduzir comportamentos de consumo que não correspondem à sua fase de desenvolvimento.”
Maria ressalta que, no Brasil, qualquer publicidade dirigida a crianças é ilegal e abusiva, conforme o ECA, o CDC e a Resolução 163 do Conanda. Ela também alerta para as formas sutis de marketing, como o uso de influenciadores jovens, desafios virais e linguagens coloridas que afetam diretamente um público vulnerável.
ASMR, unboxings e o “glow” como recompensa
O apelo sensorial dos vídeos de ASMR e unboxings transforma o ato de aplicar um cosmético em entretenimento. Sons de borrifadas e texturas cremosas despertam prazer visual e auditivo, criando um desejo de pertencimento. A rotina de skincare se converte em um ritual de validação social.
Crianças com milhares de seguidores avaliam produtos, ensinam “rotinas de autocuidado” e se tornam pequenas referências de consumo. Quando uma criança vê outra testando um sérum, a barreira crítica desaparece. O marketing não precisa ser imposto: ele é espelhado.
Reportagem do The Guardian relata cenas de caos em lojas, com meninas usando produtos à base de retinoides e ácidos, resultando em irritações e queimaduras. O pertencimento, nesse caso, é literal: para fazer parte, é preciso consumir.
Adultização precoce: riscos visíveis e feridas invisíveis
Dermatologia e toxicologia
A pele infantil é mais fina, permeável e ainda em desenvolvimento — o que a torna mais suscetível a irritações, alergias e absorção de substâncias químicas. O Journal of Drugs in Dermatology aponta lacunas de segurança em produtos populares entre crianças, com ativos como retinol e ácidos esfoliantes sem comprovação de segurança para peles jovens.
Casos clínicos relatam dermatites e reações adversas em adolescentes que seguem tendências das redes. Dermatologistas recomendam minimalismo: limpeza suave, hidratação leve e protetor solar.
Pesquisas da Columbia University e da Earthjustice mostram que a maioria das maquiagens infantis vendidas nos EUA contém metais pesados, PFAS e compostos potencialmente carcinogênicos. A UC Davis detectou ftalatos e parabenos na urina de crianças entre dois e quatro anos, indicando exposição precoce a químicos presentes em produtos de uso pessoal.
Saúde mental, identidade e autoestima
A estética precoce transfere a autoestima do ser para o parecer. Crianças começam a se comparar, a medir sua beleza pelo brilho da pele e a enxergar o cuidado como vigilância. O “amor-próprio” vira busca por aprovação. Estudos em psicologia e dermatologia associam o uso excessivo das redes a distorções de imagem, insatisfação corporal e ansiedade.
“Essa exposição constante tende a aumentar os níveis de ansiedade, de insatisfação com o corpo e pode abrir caminho para distúrbios alimentares e depressão na adolescência”, adverte Maria Mello.
Quem lucra e quem paga: marketing, varejo e regulação
Marcas e varejistas dominam a narrativa do “autocuidado saudável”, mas muitas vezes lucram com a ansiedade estética e o desejo de pertencimento. O caso da Sincerely Yours exemplifica isso: recorde de público, vendas esgotadas e fãs transformados em fluxo de caixa.
Escritórios jurídicos já alertam para riscos legais em campanhas de skincare voltadas a menores, como questões de privacidade, rotulagem e influência velada. O estado de Connecticut abriu investigação contra ações da Sephora direcionadas a crianças.
Mesmo sob escrutínio, o mercado avança. Segundo a consultoria AYTM, pais de meninas da geração Alpha gastaram em média US$ 140 por ano em skincare e US$ 119 em maquiagem em 2023. O público infantil e adolescente movimentou US$ 4,7 bilhões no mesmo ano.
Publicidade, pais e a infância como novo mercado
A publicidade contemporânea fala a língua do afeto: “ame-se”, “cuide de você”, “valorize sua pele”. Quando dirigida a crianças, essa mensagem se torna um convite à estética precoce. Lojas e influenciadores mesclam entretenimento e venda, enquanto pais, sem preparo técnico ou tempo, acabam cedendo.
O resultado é a adultização: corpos ainda em formação se comportam como vitrines de performance. A ausência de filtro parental reforça a ideia de que autocuidado é sinônimo de consumo.
O evento em Nova Jersey revelou essa engrenagem. Crianças que seguem Salish Matter não querem apenas o produto — querem pertencer à narrativa que ela representa. Comprar vira símbolo de identidade; o brilho da pele, uma métrica de valor.
A competição estética infantil ganha contornos digitais: o “glow” e o “clean” definem quem é aceita ou admirada. O evento que começou como um lançamento de marca terminou como retrato de uma geração ansiosa por aprovação — e de um mercado disposto a vendê-la.
É possível proteger sem proibir
Proteger não significa proibir, mas educar. É preciso ensinar a diferença entre cuidado e consumo, entre o que faz bem e o que apenas parece bonito. Quando as crianças aprendem a reconhecer o marketing, desenvolvem senso crítico e autonomia.
Adotar um minimalismo consciente é parte desse processo. Uma rotina infantil precisa de pouco: limpeza suave, hidratação leve e protetor solar bastam. Quanto menos passos, menor o risco — e maior a chance de preservar o propósito original do cuidado.
As marcas devem assumir responsabilidade: rotulagem clara, advertências visíveis e transparência sobre conteúdos pagos. O público infantil não pode continuar exposto a promessas e composições inadequadas.
O poder público precisa evoluir na regulação e fiscalização da publicidade digital, investigando conteúdos disfarçados de entretenimento e exigindo comprovação científica de segurança por faixa etária.
Pais também têm papel essencial: revisar produtos com os filhos, limitar compras impulsivas e conversar sobre o que é realmente necessário.
Por fim, é fundamental que a ciência acompanhe o mercado. Dermatologistas, pediatras e pesquisadores devem ampliar estudos sobre a segurança e os impactos dos cosméticos em peles jovens. Só com dados sólidos será possível equilibrar desejo, saúde e responsabilidade.
O fenômeno Sephora Kids é o espelho de um tempo em que o desejo se tornou motor do consumo. O caso Sincerely Yours apenas deu rosto e proporção a algo que já se desenhava nas telas.
O desafio não é impedir que crianças comprem cremes, mas recolocar o cuidado em seu lugar original: o da proteção, não o da performance.
Há belezas que não podem — e não deveriam — ser vendidas.
Fontes:
- Pediatrics: https://publications.aap.org/pediatrics/article-abstract/156/1/ e2024070309/202103/Pediatric-Skin-Care-Regimens-on-TikTok?
- https://publications.aap.org/pediatrics/article-abstract/156/1/e2024070309/202103/ Pediatric-Skin-Care-Regimens-on-TikTok?redirectedFrom=fulltext&utm_source=
- PubMed: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/40911742/
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11791375/?utm_source=
- https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11107899/?utm_source=
- CBS News: https://www.cbsnews.com/news/skincare-industry-products-tweens-harm young-skin/
- Beauty Matter: https://beautymatter.com/articles/sincerely-yours-sephora-debut? AYTM: https://aytm.com/post/sephora-kids-gen-alpha-skincare?
- The Guardian: https://www.theguardian.com/society/2025/sep/17/sephora-workers-child skin-care?
- Modern Retail: https://www.modernretail.co/marketing/over-80000-attend-launch-pop-up of-teen-skin-care-brand-sincerely-yours/ Meio & Mensagem: https://www.meioemensagem.com.br/marketing/movimento-sephora kids-acende-alertas-aos-pais-e-a-industria