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Lulu no Quadrado
Lulu no Quadrado

Como fui de crítica gastronômica a auxiliar de cozinha

Passei dois dias atuando como auxiliar de cozinha freelancer em eventos particulares, trabalhando subordinada à uma Chef profissional para ampliar minha perspectiva sobre o lado que recebe as críticas

Lulu Peters

17/03/2023 10h00

Foto: Reprodução

O contexto

Não é de hoje que a troca de experiências na internet influencia a decisão de outras pessoas na hora de comprar um produto ou contratar um serviço. Criticando bares e restaurantes desde 2007, só fui perceber o impacto da minha fala quando vi casas fechando e ouvi fofocas sobre proprietários terem ‘medo’ de mim.

Naquela época, o mercado realmente precisava de uma sacudida, e não havia canais como mídias sociais e sites especializados para receberem os relatos de experiências reais.

Em 2013, um estudo da empresa Nielsen já apontava que 70% dos entrevistados consideravam as análises de outros usuários a forma mais confiável de conhecer um produto. Já em 2016, outra pesquisa, realizada por uma equipe de neurobiologistas da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, localizou a área do cérebro que influencia nossas capacidades de julgamento, apontando que a tendência do ser humano é ser mais crítico ao apontar erros e mais racional ao fazer elogios, ou seja, nós presumimos que o negativo é má-fé, é proposital, e o positivo é bom, mas quase que “sua obrigação”.

Isso explica porque vemos posturas um tanto agressivas por parte de clientes insatisfeitos, que “perdem a mão” na hora de criticar, mas também posturas nada profissionais por parte dos proprietários e gestores dos negócios na hora de se “defenderem”.

Ao perceber que nem todo mundo sabe do que está falando ao criticar e que muita gente parece gostar desse “banho de sangue” metafórico na internet muito mais do que os elogios, decidi que era hora de, mais uma vez, modular minhas críticas. Afinal de contas, é muito fácil sentar e apontar os dedos sobre as falhas dos outros, sem ter qualquer noção dos problemas e obstáculos enfrentados por quem está do outro lado. Era hora de entrar no campo ‘inimigo’ e de verdade.

A experiência

Não vou mentir que, conhecendo muitas pessoas do meio, procurei amigos para me candidatar, inicialmente, a vagas de salão, os chamados atendentes ou garçons, que fazem pedidos, tiram dúvidas, indicam pratos, levam e trazem bandejas e servem.

Para minha surpresa, a maioria achou que eu estivesse brincando. Como se fosse impensável uma jornalista, que avalia os locais, querer fazer um serviço desses. Isso já me mostrou um viés que eu já sabia que existia: a arrogância do meio gastronômico.

De novo, não estou falando que é tolerável o atendente que já chega mal humorado, joga o cardápio na mesa e não ajuda em nada. Estou falando de histórias que ouvi em que o cliente recusou a indicação de vinho do garçom, treinado para isso, mas aceitou imediatamente o mesmo vinho, quando indicado pelo proprietário da casa, que é estrangeiro.

Não consegui um trabalho de freela de atendente, até que uma grande amiga e personal chef, que, há anos, elabora e executa cardápios para eventos particulares, sejam eles coquetéis, noivados, aniversários, etc, não conseguiu um auxiliar de cozinha a tempo e me convidou.

E eu, que não sou de fugir da raia, fui.

Olha, a maioria das pessoas não faz ideia do que é passar de cinco a oito horas em pé. Eu, que tenho quase 1,75m de altura, rapidamente senti dor nas costas, por ter que ficar curvada sobre a pia, lavando a louça que ia e voltava, com uma rapidez que nem se compara a de um restaurante lotado.

Quebrar os ovos, checar a massa, ver se a água ferveu, devolver tudo que foi tirado para o lugar correto, para não atrapalhar a Chef, pegar em panela quente, procurar a panela certa, montar os pratos, com precisão, já que um molho que cai errado, porque “sujar” a apresentação. O trabalho não parece terminar.

Isso tudo num ambiente nada hostil, onde a outra assistente, com muita experiência, me salvou mais de uma vez, e uma Chef que, por mais que seja profissional e estivesse me tratando como deveria (até porque meu pagou pelo serviço), é minha amiga, e com clientes que estavam curtindo o momento, porém, totalmente “na deles”.

No outro evento, a cozinha era minúscula e o cardápio era de empratados, ou seja, quase morri lavando tanta louça, sem espaço, tentando não bagunçar e não quebrar nada, vendo as pessoas rejeitarem alguns dos ingredientes super selecionados e gostosos, simplesmente, por não conhecerem.

Tudo, com sorriso no rosto.

Tudo bem, não só eu sabia que minha experiência ali era temporária, mas eu também gostei muito de servir, de ver a criatividade da Chef virando algo real, e de fazer parte daquele momento da vida das pessoas, mesmo que elas nunca sequer cheguem a saber meu nome. Com exceção, claro, de uma seguidora linda e fofa que me reconheceu e foi me cumprimentar.

Depois de horas sem parar, eu ainda tive o privilégio de ir embora no meu carrinho, velho, mas meu. Ir direto para casa, tomar um banho e ter uma noite de sono excelente, porque a exaustão não deixou minha mente inquieta ficar falando. Mas essa não é a realidade das equipes de cozinha profissional. Não sei o que faria se tivesse que voltar ao mesmo ambiente de trabalho, no dia seguinte. Consegui ver o encantamento do trabalho braçal, físico. Nos traz sensação de poder, de vitalidade. Mas será que todo o dia conseguiria ver esse serviço com alegria?

Enfim, uma experiência que me levou a refletir sobre os salários, as condições, não só do trabalho, mas da infraestrutura da cidade, que falha no transporte, na segurança, na fiscalização.

Por isso, meu muito obrigada e um sincero abraço a todos os profissionais que, dia e noite, tiram seu sustento do ato duro e pesado de “servirem” outros.

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