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Envelhecer é uma arte
Envelhecer é uma arte

O grande iceberg do envelhecimento humano

O que fazer quando os pais ficam idosos e vão precisando de muita ajuda? Levar para morar consigo? Procurar um bom residencial para pessoas idosas? Manter na casa deles sob responsabilidade de profissionais cuidadores? Qualquer decisão deve considerar suas consequências; é preciso saber que o que vemos nas pessoas idosas é só a ponta de um iceberg

Juliana Gai

28/11/2022 9h58

Foto: Rodnae Productions/Pexels/Divulgação

Olá, leitores. Nesta semana que passou, eu fiz uma publicação no meu Instagram sobre um tema que cabe dentro do conceito de “decisões em gerontologia”. Foi sobre uma dor difícil de ser elaborada por muitas pessoas: o que fazer quando os pais ficam idosos e vão precisando de muita ajuda? Levar para morar consigo? Procurar um bom residencial para pessoas idosas? Manter na casa deles sob responsabilidade de profissionais cuidadores? Há condições financeiras para subsidiar escolhas? O que é possível?

Bom, gostaria de ensinar aqui neste texto que qualquer decisão sobre envelhecimento e cuidado de pessoas idosas deve levar a uma reflexão profunda sobre as consequências práticas dela e sobre como as famílias e os próprios idosos irão lidar com isto no dia a dia. Para subsidiar um bom planejamento, é preciso saber que o que vemos nas pessoas idosas é só a ponta de um iceberg, cuja parte submersa é muito maior do que imaginamos.

Se a sociedade continuar não percebendo a parte submersa do grande iceberg do envelhecimento humano, continuará perpetuando decisões que geram uma resolução fake dos problemas que, em algum momento, trará à tona um naufrágio do plano de cuidado. Como a batida do Titanic no tal iceberg, tão bem descrita no filme de 1998, que deixou claro o quanto o descaso com a percepção de perigo pode mudar o curso da história. Icebergs são, de fato, muito perigosos.

Em 1964, J. Williamson e colaboradore publicaram na revista científica Lancet, até hoje considerada uma referência em publicações científicas, um artigo falando sobre pessoas idosas residentes na comunidade e suas necessidades não vistas e, portanto, não relatadas, dando início a uma discussão mundial sobre a visão do envelhecimento humano como um iceberg, onde damos importância só para o que está nos sendo mostrado e relatado no momento: a ponta, ignorando a parte submersa. Isto vale para pequenas e grandes decisões. Até ao se tratar uma dor crônica em uma pessoa idosa, é necessário avaliar o que está sustentando a permanência desta dor que pode ser, não necessariamente, causada só por um problema físico.

Muitas coisas estão lá na parte submersa do iceberg, tenham certeza! As doenças que ainda não se manifestaram ou estão silenciosas moram neste lugar não visto, dificultando o planejamento de estratégias de prevenção das perdas funcionais. Além disso, sob a água, também encontramos as questões psicossociais, históricas, culturais e econômicas relacionadas ao processo de envelhecer e ao cuidado de idosos dependentes.

Então, vejam que nesta forma equivocada, simplória, de avaliar o idoso e a velhice, nós nos deixamos levar sociologicamente por estereótipos não verdadeiros e crenças às vezes idealizadas, mas irrealizáveis. É muito fácil mencionar que idosos são “seres santificados”, por exemplo, mas idosos são só pessoas que envelheceram. Como exigir de um filho que nunca foi cuidado pelos pais, que ame, idolatre e cuide de seus pais só porque eles ficaram idosos? Será uma solução justa? A justiça pensa que sim e denomina sempre um filho como o responsável por prover pais idosos em situação de vulnerabilidade. Está correto. Mas prover e cuidar são conceitos amplos, não envolvem, diretamente, amor.

Cuidar pode ser contratar cuidadores para prestar cuidado, pode ser pagar pelos cuidados de um residencial geriátrico, pode ser pagar pelo cuidado de profissionais, pode ser um ato realizado de muitas maneiras. Perdoar é sublime, eu sei, mas não podemos julgar as outras pessoas na sua dor própria. Não somos juízes! E até os próprios juízes, ao determinarem uma sentença, a fazem considerando a proteção dos vulneráveis e sua boa qualidade de vida, mas não tem como entrar em corações feridos e obrigar as pessoas a esquecer todas as mágoas da noite para o dia. Algumas vezes, o processo de cuidar dos pais idosos pode sim culminar em uma redenção para ambas as partes. Em outras, não. É humano. Neste caso, é preciso olhar a parte submersa do iceberg sem julgamentos!

Assim como as questões humanas, as questões biológicas também podem não ser vistas se não aprendermos a explorar a parte submersa do iceberg. As pesquisas em saúde ajudam demais os profissionais a compreenderem demandas ocultas dos pacientes idosos e orientar as famílias. Por exemplo, se nós já sabemos que perdemos células do sistema nervoso com o envelhecimento e que isto afeta a capacidade de comunicação entre as células sobreviventes, interferindo na nossa memória e em outras funções cognitivas e motoras, precisamos entender que a nossa própria participação na prevenção de doenças cerebrais é fundamental. Ginástica cerebral é um bom meio de manter as conexões celulares. Exercícios físicos propiciam treinamento de reflexos motores, manutenção da massa muscular e óssea e, também, estimulam as funções cerebrais. Mas, infelizmente, é mais comum que as pessoas procurem um médico geriatra ou um neurologista somente quando os sinais de demência, como perda de memória importante e dificuldade na realização das atividades do dia a dia, já se manifestaram na pessoa idosa, e, então, já passaram a compor a parte visível do iceberg.

Abaixo da superfície, pode haver inúmeros problemas não relatados. Coisas inimagináveis que só quem pratica geriatria e gerontologia conhece. Vou citar mais exemplos. A pessoa idosa e seu filho podem não contar na consulta que nunca se deram bem e tem dificuldade de residir na mesma casa, muito menos que a casa está um pandemônio de discussões desde que o idoso foi morar lá, o que está aumentando a pressão arterial e o estresse de todos, incluindo o idoso. A pessoa idosa pode não contar que caiu em casa por medo de o filho a obrigar a mudar-se para a casa dele ou de ser considerado inapto para cuidar de si mesmo. A pessoa idosa pode achar que tem condições de dirigir, não mencionar os inúmeros arranhões e batidas no seu carro, e seu filho pode achar que isto não é assunto para discutir no consultório médico ou com o fisioterapeuta. E, assim, ninguém tomará providências até que um acidente grave aconteça. A pessoa idosa pode ocultar um sofrimento diante de um luto em relação as perdas físicas e ser, simplesmente, tratado com remédios para depressão porque ninguém se lembra que um profissional especializado em saúde mental pode ajudá-lo a compreender melhor este momento da vida.

A população acima de 60 anos cresce muito no Brasil e, segundo o censo anual, os idosos acima de 80 anos são a população que mais cresce. É preciso que toda a sociedade seja capacitada a entender melhor o envelhecimento humano, de modo a contribuir com a criação de uma velhice mais ativa e feliz no país. Só análises situacionais amplas podem estimular a criação de políticas públicas de promoção do envelhecimento saudável e implementação de ações de combate ao envelhecimento com fragilidade, à violência contra a pessoa idosa e à sobrecarga do sistema único de saúde. Afinal, até a parte financeira fica submersa em discussões, às vezes, superficiais e exageradamente assistencialistas, e pouco reais do fenômeno de envelhecer.

Há um compromisso social em informar a sociedade sobre a velhice! Não o faço simplesmente porque sei sobre o assunto. Faço porque acredito que educação transforma. E não falo só de escola, falo de educação comunitária. Quando a comunidade se transforma, ela consegue transformar o mundo. O poder da educação coletiva é muito grande. E eu acredito nela.

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