Em 2018, éramos cerca de 7,6 bilhões de pessoas no mundo. Atualmente, mais de 4,5 bilhões usam a internet, enquanto os usuários de mídias sociais ultrapassaram a marca de 3,8 bilhões. Quase 60% da população do mundo já está online, e as últimas tendências sugerem que mais da metade da população total usará as mídias sociais até o fim de 2022, sendo que grande parte acessa via dispositivos móveis, especialmente os smartphones. A tecnologia está aí, é presente e não mais futuro e não temos como negar.
O ser humano na última década mudou radicalmente sua forma de se comunicar. Palavras como telegrama, fax ou mesmo carta já soam estranhas para muitos adolescentes e jovens adultos que não só desconhecem a origem de tais palavras como também a sua utilidade.
Não se disca mais para falar com as pessoas. Ou se tecla, ou se grava um áudio, mesmo que os smartphones atuais ainda possam ligar as pessoas pela voz de forma síncrona. A palavra fotografia se tornou mais famosa do que nunca. Em 2019, os apps para fotografias estavam em sexto lugar no Google Play e em segundo lugar em aplicativo com o sistema iOS.
Entretanto, ao contrário do que se possa pensar, tais números não necessariamente são saudáveis ou indicativos de evolução. De acordo com pesquisa realizada por Nancy Etcoff, de Harvard, 53% dos entrevistados da Geração Z disseram que o smartphone “era seu melhor amigo”. Para muitos tais dados podem não significar muita coisa, ou na verdade podem ser úteis, uma vez que quanto mais nos smartphones, menos trabalho os filhos tendem a dar, correto?
Mas, este pensamento está errado. Ao contrário da “babá eletrônica” da década de 70, a chamada televisão, os smartphones não tem funcionado muito bem nesta função. Do ponto de vista da psicologia, percebo que o uso da tecnologia pela atual sociedade, em especial os jovens, funciona muito mais como automedição do que como fonte de interação e comunicação, como gostariam pais e educadores.
Para muitos que estão lendo, este ensaio pode não ser algo tão simples de ser percebido, entretanto, é sempre bom lembrar que nosso cérebro adora tudo que nos dá prazer e nos anestesia da dor e do sofrimento que a sociedade nos impõe. Assim, mesmo sem perceber, à medida que vivemos momentos de angústia e sofrimento, sentimentos inerentes à nossa existência, buscamos atividades que amenizem a dor.
Nesta busca para evitar o desprazer, a internet apresentou-se como excelente porta de emergência e fuga de nossos problemas diários. A este respeito, acredito ser importante fazer um parêntese: o problema não é a internet e sim a tentativa, muitas vezes sem sucesso, para, por meio do mundo virtual, evitarmos o sofrimento do mundo real.
Entre as campeãs de acesso está o Instagram. A rede social apresentou crescimento interessante, passando de 63,3% de adoção para 80,2%, se consolidando como a segunda colocada em preferência no Brasil. Estes dados corroboram com uma pesquisa realizada pela Fstoppers informando que em 2014, ou seja, seis anos atrás, 10% de todas as fotos do mundo foram tiradas nos últimos meses daquele ano. Os números são impressionantes, Mais de 1 bilhão de usuários mensais estão ativos no site, mais de 60 milhões de fotos são postadas a cada dia e existem 1,6 bilhões de curtidas diariamente, sendo que boa parte destas fotos são de selfies.
Os autorretratos digitais são a nova personificação da promoção pessoal, ou marketing pessoal como gostam de pontuar alguns “blogueiros”. Registrar todo e qualquer acontecimento parece ser a cultura do momento. Seja o prato que está comento, a organização do armário, a roupa do dia, a escrivaninha de trabalho, ou um simples pôr do sol visto da janela do quarto, o importante é “postar” e com isso compartilhar com o mundo sua forma de ser, sua intimidade. Ou seria sua aparente “felicidade”?
Voltando a visão da psicologia a respeito do fenômeno das selfies, impossível não retratar o acontecimento do prato do dia, o copo de cerveja na mesa do bar, ou ainda a pose em seu ambiente de trabalho, sem pensar na necessidade humana de ser notado, apreciado e reconhecido, mesmo que “apenas” pelos seus pares.
Como a maioria dos comportamentos (do ponto de vista behaviorista) é preciso um reforçador, caso contrário a tendência do comportamento é a extinção. Assim, é preciso ter “likes” ou seguidores, para que o efeito positivo e agradável de sua postagem possa te incentivar a continuar com todo este processo. Este comportamento, ou melhor dizendo, esta ação, não se desfaz ou se extingue sem sequelas, esta é a grande questão. Atualmente não ser notado, não ter “curtidas ou likes”, pode significar o fracasso para muitos daqueles que tem nas redes sociais seu ópio diário.
A disposição de muitos em “postar” a exuberância do momento tem como justificativa implícita a fuga de suas frustrações, seus medos e fantasmas. É impressionante a felicidade postada nas fotos, vídeos ou mesmo podcasts de grande parte dos frequentadores do mundo virtual. Não existe frustração, neste meio, foge-se para rede na tentativa em vão de eliminar ou mesmo reduzir a angústia do real.
O palco da vida transforma-se em um grande espetáculo quando na verdade não passa de um simples tablado, e aqui não me refiro a condições sociais, e sim, a condição psíquica de enfrentamento da realidade nua e crua como se apresenta diariamente e milhões de pessoas por todo planeta.
Não temos mais a foto do dia ou do passeio, tudo isso já foi substituído pela foto do momento, alimentando a busca por atenção e reconhecimento a cada toque na câmera do celular, escondendo a verdadeira face daquele que se expõe. E por trás desta alegria esconde-se o verdadeiro sujeito e seu “SELF” verdadeiro. Aquele que busca atenção e reconhecimento de forma repetitiva, post atrás de post. E a cada nova foto sua dependência social se apresenta como forte indicativo de baixa autoestima e narcisismo.
Nunca, em toda história da humanidade, se fotografou mais a si mesmo, seu prat e sua roupa, do que amigos, familiares e paisagens. Nunca tivemos uma geração tão narcisista e egocêntrica, cuja realidade se esconde em selfs e postagens constantes.
A autoafirmação não se faz mais pelas conquistas e sim pela postagem do prato do dia. A autoimagem se tornou sinônimo de sucesso, o sorriso venceu a lágrima, não se posta sofrimento, não se posta fragilidade, afinal, o que podem pesar deste sujeito que não segue aos padrões sociais da roupa do dia?
Obsessão pela aparência? Exposição do inconsciente imaginário? Viver o reality show pessoal, onde todos, ou apenas os “assinantes” tem acesso para ver seus momentos de privacidade na cama, de pijamas, tomando café da manhã, na piscina, ou somente uma fuga temporária da realidade?
A exposição da intimidade não permite críticas, nem poucas curtidas. Muitos são os que “deletam” tanto as fotos, como aqueles que os contrariaram, como se na vida também pudessem “deletar” seu problemas e críticos de suas ações ou mesmo falta delas.
Pode ser que muitos dos jovens leitores deste ensaio não se identifiquem, ou mesmo critiquem minha leitura de todo este processo. Pode ser que muitos ainda me chamem de “velho ou ultrapassado”, mas o fato é que dar prioridade ao post ao invés da realidade que nos cerca, apresenta-se como indicativo de que algo não está bem. Afinal, quando minha geração documentava em fotos momentos em viagens, festas ou simples membros da família, não se estava expondo uma intimidade, ou mesmo buscando aceitação do grupo a que pertencem, apenas se retratava o momento a ser lembrando, seja ele um instante, uma paisagem ou a pessoa amada.
Vive-se hoje em constante exposição, no BigBrother das redes sociais e deixa-se de experenciar a vida para experenciar as curtidas de seus seguidores. Seguidores estes, adoradores do mesmo Deus, do mesmo prato, roupa e estilo de vida. Foge-se do controverso, travestindo-se de defensor do diverso, para não encarar o diferente pensar, que se apresenta no sentir solitário como mal estar contemporâneo. As curtidas transformam a frustração em aceitação, o incomodo em algo positivo, e quanto mais “likes” ganhamos mais nos afastamos de nossos verdadeiros sentimentos, camuflando assim, questões não resolvidas.
É verdade que precisamos nos adequar as novas tecnologias, da mesma forma que é fato a necessidade de passarmos por algum sofrimento, alguma contrariedade, para aprendermos a lidar com as diversidades que se apresentam no dia a dia.
É preciso lembrar que a realidade muda constantemente. Mesmo que mudemos de roupa, que nosso almoço de hoje seja diferente do de ontem, nem tudo que fazemos, comemos ou vestimos precisa ser compartilhado.
Afinal, como bem diz Michael Mahoney “precisamos mudar continuamente para permanecermos os mesmos”.
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Ate a próxima…