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Além do Quadradinho
Além do Quadradinho

Murica, a poesia e sua morada na música brasileira

“Eu não estaria aqui se não fosse a poesia, se não fosse a palavra. Eu só virei MC por causa da poesia, por causa da palavra”

Thaty Nardelli

02/10/2023 10h53

Foto: Raul Rodrigues

Murillo Fellipe, o Murica, 23, é um dos MC’s que representa a nova geração do rap brasileiro e carrega milhões de ouvintes nas plataformas de streamings. Um dos grandes pilares de sua carreira foram as batalhas de rimas do Distrito Federal, além do amor pela palavra e pela poesia. “Eu não estaria aqui se não fosse a poesia, se não fosse a palavra. Eu só virei MC por causa da poesia, por causa da palavra”, conta o artista.

Multifacetado, hoje o músico reúne referências que vão da Tropicália dos anos 1960 às autênticas formas de expressão da cultura urbana, como o skate e a poesia marginal. Agora, Murica, que viveu sua infância nas periferias do DF, se prepara para lançar “O Que Restou da Maravilha”, com a cantora e compositora brasiliense Letícia Fialho.

A Além do Quadradinho desta segunda (2) apresenta Murica:

Como a periferia acrescentou na sua carreira? Como você enxerga esse lugar, que é onde você cresceu?

Antes de tudo, de ser bom ou ruim, foi minha escola. Tem uma frase boa, que eu não lembro quem disse agora, que diz: “Favela boa é a favela que não existe”. Entende? No conceito, é isso. Não era para existir favela, não era para existir essas dificuldades, essa má distribuição das coisas. Mas minha infância, como a de várias pessoas e de diversos meninos de periferia no Brasil, foi uma infância com as suas maravilhas de ser moleque. A infância é maravilhosa, porque a gente não enxerga muitas coisas difíceis assim. Mas também foi bem difícil. Tenho várias lembranças de ter que estudar o dobro dos alunos de escola particular para ingressar em uma universidade pública; de ter que, por exemplo, morar em Brazlândia, que é uma cidade mais afastada do centro, e, por isso, estar sempre 40, 50 minutos atrás dos meus amigos. Mas desde essa época, sempre me interessei por música, poesia, composição e outras linguagens da arte.

E você lembra o que escutava e lia nessa época?

A arte entrou na minha vida muito cedo, com meu pai me aplicando muita música brasileira, muito rap nacional e internacional. Muita cultura! Ele me levou ao teatro, falou que a leitura era um bom caminho. Então, foi uma influência bem forte dentro de casa. Ainda muito novo eu já quis escrever, me dei bem com as palavras e segui esse caminho. Para mim foi especial, bem importante, a influência do meu pai para acessar esse caminho e em toda a minha vida.

Inclusive, a poesia tem um papel importante na sua vida…

Eu não estaria aqui se não fosse a poesia, se não fosse a palavra. Eu só virei MC por causa da poesia, por causa da palavra. Como disse, a poesia é uma arte que me chamou muito cedo — e eu fui. A palavra é tudo que eu tenho. É onde eu me sinto bem, onde eu me afirmo, onde eu brinco, onde eu trabalho e também onde eu descanso. A palavra faz o teto e o pão do meu filho, faz o meu sustento e a minha cabeça. A palavra é tudo isso. Sem a palavra, a gente nem estaria tendo esse espaço para essa entrevista. A poesia, para mim, é o principal. Inclusive, vou lançar meu livro de poesia, que se chama “Garrancho”. Já deixo aqui que deve sair no ano que vem. Estou feliz com esse projeto!

Foto: Divulgação

E qual papel das batalhas de MC’s na sua carreira? Quais são suas lembranças?

As batalhas foram uma grande escola para mim. Foi onde eu aprendi a perder, a ganhar, a ter que colocar minha rima ali na hora e escolher bem as palavras. Conheci a cultura viva ali! A gente ocupava uma praça pública, que até então era só de transeuntes apressados para o trabalho, como a Praça do Relógio, em Taguatinga. A gente ocupava para fazer cultura, para fazer arte, para rimar na hora. Isso parava a cidade. E, naquela época, as batalhas não eram consolidadas em relação ao investimento que possuem agora e como as coisas se deram, mas já estavam começando a ter certa relevância.

Nessa época, você já sentia um distanciamento social das batalhas realizadas nas regiões administrativas às realizadas no Plano Piloto?

Com certeza. Mas eu tive que me virar, né?! Eu tive que aprender a lidar, a pedir um real ali, dois reais ali. Na época, a passagem de ônibus era R$ 3,50. Eu já acordava pensando nesses R$ 3,50 e, a partir daí, eu nem pensava na volta, eu arrumava esse dinheiro na batalha. É a malandragem, a gambiarra, a “rataria” pura, né?! De sobrevivência.

Nessa época, quais foram suas referências para começar a desenvolver sua sonoridade?

Foram os grupos e artistas de rap que eu escutava, que meu pai me apresentou e eu sempre gostei. Emicida, Racionais MC’s, MC Marechal… sons onde a poesia era a principal. Além disso, livros, discos, amigos, lugares, vivências, remorsos… muita coisa influencia a minha sonoridade.

Foto: Divulgação

Foi nessa época que surgiu o “Puro Suco”?

O Puro Suco surgiu em 2017, e o objetivo era o mesmo de hoje, fazer música de verdade, música brasileira, música com o nosso coração, fazer o rap que a gente acredita, exaltar a nossa cultura latino-americana, pensar num caminho de rap descolonizador, tá ligado?! E desse jeito, assim, com a malandragem natural do rap, com tudo isso, nosso objetivo é levar nossa música onde estiverem os corações.

Nota da editora: o Puro Suco é formado por Murica, Prs e Ronchi e aposta no que chamam de rap tropicalista, uma mistura do gênero criado no Bronx (EUA) e de ritmos tradicionais brasileiros como o samba e o maracatu.

Foto: Divulgação

Como foi seu encontro com o MK, seu DJ e produtor musical?

Foi uma das coisas mais místicas e cabulosas que aconteceram comigo e com o MK. Quando a gente se viu pela primeira vez, um amigo me falou assim: “Pô, vamos num estúdio ali na Ceilândia”. Eu fui, e quando eu cheguei lá, apresentei um sample para o MK. De primeira, fizemos o single ‘Cascavel’, uma música que me deu relevância no cenário nacional. Logo depois, pensamos “peraí, é muito forte esse nosso encontro”. E vimos que a gente precisava trabalhar mais juntos. Então, fomos crescendo juntos e já começamos a fazer meu primeiro álbum, “Fome”, que foi uma produção bem visceral. A gente segue até hoje fazendo música pra caramba e fazendo acontecer outras coisas.

Nota da editora: MK é produtor musical e DJ da região de Ceilândia. Produz desde 2015 e une em seus trabalhos fundamentos do Hip Hop com elementos da música popular brasileira. Em 2018, realizou seu primeiro trabalho com Murica, com o lançamento do single “Cascavel”. MK trabalha com Murica desde o início de sua carreira, sendo produtor também dos álbuns “Fome”, lançado em 2019, “Sede”, além dos EPs “O que restou da Marginália” (2021) e “Maracutaia”, lançado em 2022. Além disso, MK também é produtor musical do grupo Puro Suco.

Com acesso a tantas linguagens da arte e também sentimentos e vivências, como acontece seu processo de composição?

Meu processo de composição é pela palavra. Eu tenho meio que um ritual de composição com o MK: ele solta a batida e a gente fica ouvindo em looping e vai escrevendo. Ele dá pitaco, e eu vou conduzindo. Ele coloca a base, e a gente faz uma seleção de batida — porque o MK é uma máquina de batidas, é um produtor absurdo, então ele sempre tem batidas ótimas, novas. E aí eu falo: “Pô, gostei dessa!”. A gente separa e fica ouvindo até a inspiração vir. Tem dia que é mais fácil, tem dia que é mais dolorido, mas a gente tá ali…

Você apresenta lança agora o EP “O Que Restou da Maravilha”, juntamente com a cantora e compositora Letícia Fialho. Como foi esse encontro?

“O Que Restou da Maravilha” tem o propósito de anunciar esse encontro, sabe? Que foi natural. Porque, como eu e a Letícia costumamos dizer, não são dois artistas ali juntando para aumentar o público ou só para fazer um show. São dois amigos que se amam muito. Que gostam e cultuam a poesia e a música. Então, é um lugar de muito afeto, é um lugar muito à vontade onde eu faço música com a Letícia. É um lugar de muito estudo também, porque ela me ensina muito. “O Que Restou da Maravilha” é isso. É mostrar essa fresta, esse afeto. O que resta depois de um vendaval? É “O Que Restou da Maravilha”. São quatro faixas, que vamos lançar no dia 4 de outubro, nas plataformas digitais e no Festival CoMA.

Foto: Thaís Mallon

Qual a expectativa para o show que vocês vão apresentar no CoMA?

O público pode esperar o encontro de dois mundos, o meu e o da Lelê. Vai ter meu DJ e produtor MK, vai ter um pedaço da banda da Letícia, o guitarrista Henrique Alvim, o trompetista Daniel Tenório… vai ser bem especial, uma coisa inédita. Vai ser ótimo. O público pode esperar a novidade, a gente vai tocar o nosso EP novo lá, que vai ser, inclusive, no dia do lançamento, e vai ser lindo.

Hoje, com uma trajetória consolidada, qual recado você deixa para quem está começando?

O recado que eu deixo é o mesmo recado que a Fernanda Montenegro uma vez deixou para atores iniciantes. Perguntaram a ela qual dica ela poderia deixar para quem está começando, e ela falou assim: “Desiste se você não ama de verdade”. Porque vai ser muita luta, dor, desafio, mas também vai ser muita maravilha. Mas tem que amar, sabe?! Independente se tiver um milhão ou dez pessoas te ouvindo, te assistindo, a entrega e o amor têm que ser os mesmos. É uma profissão “perigo”. É olhar todo dia para o abismo. Então, o recado que eu deixo é esse; ame de verdade e só. O amor não pede nada.

Acompanhe mais do artista:

Murica
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Puro Suco
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