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Além do Quadradinho
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Gu da Cei: “o sonho da Ceilândia pro mundo”

Gustavo Santos, 27, ou Gu da Cei, como é conhecido na cena cultural do DF, desenvolve sua arte no âmbito da intervenção urbana, da instalação, da poesia, da performance e do vídeo

Thaty Nardelli

30/10/2023 10h29

Foto: Max Rocha

Filho de maranhenses, mestre, artista visual e comunicador, Gustavo Santos, 27, ou Gu da Cei, como é conhecido na cena cultural do DF, desenvolve sua arte no âmbito da intervenção urbana, da instalação, da poesia, da performance e do vídeo e tem ocupado seu espaço para além das divisões do nosso quadradinho. Com trabalhos que ganharam notoriedade nacionalmente, como a “Face recognition – o rosto da insatisfação contra-vigilante”, agora também começa a ter reconhecimento internacional. Expondo atualmente no Uruguai e ganhador recente do prêmio holandês Prince Claus, voltado para jovens artistas emergentes, Gu diz: “Orgulho de saber que posso continuar acreditando na minha arte. O reconhecimento demora, mas uma hora ele chega. O sonho ‘da Ceilândia pro mundo’ é real.”

Como foi sua infância? Quais as principais memórias que você tem dessa época?
Passei a infância brincando pelas ruas da Ceilândia, e as minhas principais memórias da época são desses momentos de diversão. Morei em muitas casas, do P Sul à Ceilândia Norte. Em cada canto por onde passei fiz amigos e aprendi muito. Tenho um carinho especial pela Praça do Cidadão, porque estudei ali na Escola Classe 3 e morei um bom tempo na QNM 18, e hoje mais ainda, porque o Jovem de Expressão tá lá, deixando a Praça cada dia mais vibrante.

Quando foi seu primeiro contato com a arte?
Foi na escola. Eu amava os trabalhos de criação artística e sempre buscava experimentar ou fazer a mais. Especialmente lembro de uma peça em que atuei no ensino fundamental e de um globo terrestre feito com isopor, galhos de árvores e tampinhas de garrafa para um trabalho de geografia. O que me tocou foi saber que eu podia me transformar e tocar as pessoas com a minha expressão. Me reencontrei e me assumi enquanto artista depois que entrei na UnB, no curso de Comunicação Organizacional, quando comecei a produzir imagens com as câmeras de lá e entender melhor o que seria essa tal de “arte”.

Como um artista de Ceilândia, você faz questão de trazer a cidade em seu nome artístico. Pode comentar mais sobre isso?
Ceilândia é uma cidade que já nasce estigmatizada e que ainda hoje sofre muito preconceito, apesar de ser referência nacional em muitos setores da cultura. Eu trago ela no meu nome como motivo de orgulho por ser daqui e para evidenciar um pouco da diversidade de expressões ceilandenses.

Escultura “Sonho de Morar”, de Gu da Cei: monumento foi instalado na Vila IAPI, no Guará, que abrigou famílias removidas de outras regiões do DF. Famílias estas que, depois, passaram a ocupar Ceilândia. Foto: Divulgação

Como você acredita que a intervenção urbana, a performance e as instalações impactam o público? O que é essa linguagem para você?
Na intervenção urbana, o fator surpresa é muito forte. Na performance, acredito que as pessoas, por algum momento, se colocam no lugar do artista, e isso provoca uma autorreflexão. As instalações são uma maneira de imergir mais profundamente nas obras e nelas se perder. Essas linguagens para mim são uma maneira de estimular pensamentos e reflexões profundas.

Sua arte traz muito das políticas públicas e ocupação de espaços que no dia a dia podem passar despercebidos. Sendo assim, tudo é político?
Tudo é político. Se você não está contra a hegemonia, você está a favor, direta ou indiretamente. Eu busco inserir no cotidiano das pessoas questões revolucionárias, provocar um processo ativo de reivindicação e experimentação.

Inclusive, você sempre busca criar projetos artísticos que não se limitem a uma só linguagem da arte. Pode comentar sobre isso?
A arte está sempre em expansão e se renovando. Eu acredito que, quanto mais indefinida a linguagem da obra, mais potente ela é. Faço essas experimentações transversais na tentativa de expandir a fronteira da arte. Adoro quando as pessoas falam que algo que fiz não é arte, porque isso significa que pelo menos elas pararam para pensar sobre o conceito de arte e, consequentemente, isso abre uma janela para que elas repensem suas ideias.

Tem alguma intervenção que ficou muito marcada para você? Qual e por quê?
Além da última que aconteceu nas vésperas do aniversário de Ceilândia, a “Face recognition – o rosto da insatisfação contra-vigilante”, que eu realizei na Rodoviária do Plano Piloto. Ela é especial para mim porque teve uma repercussão muito positiva. Muitas pessoas não sabiam que tinham suas imagens capturadas no ônibus e, por isso, a intervenção serviu como uma espécie de auditoria de como está se dando o tratamento dos dados biométricos da população aqui do DF. Fui a primeira pessoa do Brasil a solicitar, para fins não policiais, as imagens dos sistemas de biometria facial dos ônibus. Com elas, integrei fotografia, vídeo, projeção, texto e performance para falar sobre vigilância, direito à cidade, direito à informação e transporte coletivo. No mês seguinte à intervenção, o número de solicitações já saltou de uma, que era a minha, para 47 solicitações. Mostra que as pessoas entenderam o recado e também se engajaram.

Como foi o processo de “Face Recognition”?
Eu fiquei muito incomodado com a imposição e investimento em câmeras com reconhecimento facial nos ônibus, que é uma tecnologia racista e transfóbica. Não houve nenhuma discussão pública ou algo do tipo. Os ônibus caindo aos pedaços e eles investindo em algo tão problemático, que fere o direito à privacidade e à cidade. Eles instalaram com a justificativa de impedir fraudes nas gratuidades, mas captam a imagem de todo mundo que entra nos ônibus. Quis ver as minhas imagens, que são minhas por direitos, é o meu rosto. Entrei em contato com as ouvidorias das empresas, mas elas faziam pouco caso e começaram a ignorar todas as minhas tentativas de contato. Solicitei via Lei de Acesso à Informação e tive que entrar com recurso até receber uma resposta positiva. Teve empresa que mandou print da tela do computador, impressa em preto e branco, carimbada e escaneada, sendo que a Lei exige que a informação seja enviada em boa qualidade — nesse caso, os arquivos das imagens. Recebi só parte das imagens solicitadas, porque eles alegaram não ter a totalidade, fato que evidenciou que nem todas as câmeras funcionam como eles alardeavam. Com essas imagens, fiz muita arte e o resto é história… até hoje colho os frutos desse projeto!

Foto: Max Rocha

Você já ganhou alguns prêmios com a sua arte. Inclusive, o último foi internacional, holandês, o Prince Claus, voltado para jovens artistas emergentes. Como você enxerga essa internacionalização da nossa arte?
Fico extremamente feliz! Receber uma premiação internacional tão importante como essa me dá gás para continuar. Tenho orgulho em saber que posso continuar acreditando na minha arte. O reconhecimento demora, mas uma hora chega. O sonho “da Ceilândia pro mundo” é real!

Hoje, inclusive, você estreia uma exposição no Uruguai. Como é ver sua arte viajando o mundo e ocupando outros espaços fora do quadradinho?
Me traz a lucidez de que, por mais que eu esteja trabalhando com questões da minha realidade enquanto morador da Ceilândia, elas têm relevância global e se comunicam com diferentes realidades periféricas.

Além disso, você é curador da galeria Risofloras, um dos únicos pontos de cultura dentro da maior região administrativa do DF. Como você enxerga a cena cultural não apenas do DF, mas essa segregação entre Plano Piloto e demais RAs?
As nossas quebradas precisam de mais investimentos. Precisamos descentralizar os espaços culturais e eventos. Ceilândia, por exemplo, é a região mais populosa do DF, e a única galeria de arte contemporânea da cidade é a Risofloras, do Jovem de Expressão, que já sofreu até ameaça de fechamento. Estamos agindo de forma independente, mas precisamos de mais incentivos. Urgente!

Gu e sua obra “SEJA”, na estação Shopping do Metrô-DF. Foto: Reprodução/Instagram

Agora, você está prestes a defender seu mestrado, que traz como tema “Ceilândia e as invasões urbanas”, em que você traz a história de Ceilândia e a relação de algumas invasões. Pode falar mais sobre isso?
Defendi a minha dissertação do mestrado em Artes Visuais na última sexta-feira (27) e fui aprovado! Ela parte da história de Ceilândia e se apropria do título de invasores que foi dado para os pioneiros. A partir disso, proponho o que chamo de “invasões urbanas”, uma série de ações de disseminação de ideias sobre (re)ocupação territorial e revisão histórica. Em breve vai estar disponível para o público.

Quais as dificuldades, como artista, você mais enfrenta dentro da cena cultural do DF?
Escassez de recursos. Ter que me desdobrar em mil para viver. Viver é fazer arte. Aos poucos, eu vivo.

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