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60 Anos, 60 Histórias

O pioneiro do antes

“Nós construímos a capital inteira de dentro do Cerrado. Sem coisa nenhuma, sem computador, sem fax, sem uma porção de coisas. É por isso que o povo e as autoridades daqui devem reconhecer a dificuldade, o sacrifício de milhares de pessoas” Ernesto Silva

Olavo David Neto

03/03/2020 9h11

Era o dia 5 de fevereiro [de 1955]”, começa Ernesto Silva em História de Brasília. “Lembramo-nos bem do entusiasmo que nos assaltou ao divisarmos o horizonte em torno, numa amplitude de trezentos e sessenta graus. Tudo em redor era azul, horizonte infinito”, afirma o autor. Este é o relato de quem, mesmo antes da escolha oficial, decidira instaurar ali, onde estava, a futura capital da República. À época do relato, já transcrito na 20ª reportagem deste especial, Silva era secretário da Comissão de Localização da Nova Capital Federal, e estava ali no Sítio Castanho acompanhado dos marechais José Pessoa e Mário Travassos.

Cerca de um ano depois da visita, Ernesto Silva substituiria Pessoa na presidência do grupo, que se transformara em Companhia de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal e logo seria extinta para dar lugar à Companhia Urbanizadora da Nova Capital. A ascensão veio como reconhecimento ao coronel do Exército e médico pediatra que, desde a criação via decreto da comissão, em 1953 — ainda no governo Getúlio Vargas —, mergulhara nos estudos de transferência da sede do poder nacional para o planalto goiano.

Nascido em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro, em 1914, Ernesto Silva teve uma infância cercada de sete irmãos. Desde pequeno alimentou o sonho da medicina, mas o primeiro diploma foi de Ciências e Letras, em 1933. Pouco mais tarde, em 1936, vestiu a farda verde-oliva e se graduou em Veterinária. A carreira na caserna lhe deu o posto de coronel, o que o habilitou a servir no Ministério da Guerra. Na pasta, trabalhou junto com o marechal Pessoa, seu guia e antecessor na Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal.

Somente em 1946, paralelamente aos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que redigiu a quinta Carta Magna brasileira — a quarta de cunho republicano; a terceira com viés mudancista —, Ernesto se graduou na Escola de Medicina do Rio, com especialização em Pediatria. Conforme Sônia Souto Silva, viúva do “Pioneiro do Antes” — alcunha atribuída por estar em Brasília antes de haver Brasília —, a escolha tinha uma explicação. “Ele falava que já cuidava de cavalos e tinha que adivinhar qual era a dor; para trabalhar com crianças, o Ernesto dizia que seria igual”, relata Sônia, aos risos. A especialização ele traria para o Cerrado, junto com a ideia de criar um hospital central e unidades periféricas, o que inspiraria o Sistema Único de Saúde (SUS).

Antes disso, porém, acompanhou o marechal Pessoa nas providências adotadas para apontar e estudar o local para se edificar uma cidade que abrigaria os maiores poderes da República. Esteve com o chefe à frente da contratação da Cruzeiro do Sul, que fez imagens aerofotogramétricas do Planalto Central, e da Donald J. Belcher, empresa norte-americana responsável por analisar as imagens e apontar cinco sítios propícios para o estabelecimento da nova capital — assuntos abordados também na 20ª reportagem desta série.

O “pioneiro do antes” junto às professoras da Escola Parque da 303 Sul, a primeira a ser criada, no molde proposto por Anísio Teixeira, ainda com estrutura de madeira.

Com JK, a mensagem para o futuro

Um episódio marcante teve em Ernesto Silva um dos coadjuvantes. Já empossado, o presidente Juscelino Kubitschek iria a Goiânia para, de lá, encaminhar um Projeto de Lei (PL) ao Congresso. Tratava-se do que viria a ser a Lei nº 2.874/56, que estabeleceu a mudança da capital, criou a Novacap e batizou, de uma vez por todas, a terceira sede do poder brasileiro. Ao chegar na capital goiana, em episódio já narrado neste especial, o avião presidencial não pôde pousar por causa de nuvens. O jeito foi se encaminhar a Anápolis, de onde, num botequim, JK enunciou a mensagem que mudou a história do país.

Ernesto estava junto ao chefe do Executivo, e inclusive narra os bastidores do episódio em História de Brasília. A mensagem também o atingiu, já que foi indicado, pouco depois da oficialização da Novacap, em 22 de setembro de 1956, para a primeira diretoria da empresa. Além de indicado, Ernesto presidiu a solenidade que abriu a Companhia Urbanizadora da Nova Capital.

Conforme a ata do evento, “o Dr. Ernesto Silva explanou os motivos dela, fazendo, ainda, breve histórico dos esforços desenvolvidos, durante os últimos sessenta anos, para tornar efetiva a interiorização da Capital do Brasil, problema secular defendido pelos grandes estudiosos dos assuntos fundamentais do País”.

Também coube a ele apresentar os projetos já em execução e explicar a constituição do terreno à comitiva presidencial que se deslocou ao Planalto Central em 2 de outubro daquele mesmo ano, no que marcou a primeira visita de Juscelino à futura capital do país.

O homem do concurso

Já na presidência da Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal, recebeu de Juscelino ordem expressa para tocar os trabalhos antes mesmo que a lei da Novacap fosse aprovada no Congresso Nacional. Iniciativas como a demarcação das terras federais, estudos de viabilidade econômica do Planalto Central e constituição de estradas, por exemplo, anteciparam-se a uma das maiores contribuições de Ernesto antes da edificação da nova capital.

Coube a ele reunir um grupo de engenheiros e arquitetos para definir as regras do concurso do plano urbanístico da futura sede do poder brasileiro. Assinado em 19 de setembro — mesmo dia em que a Novacap foi aprovada no Congresso —, o edital do Concurso do Plano Piloto saiu no Diário Oficial 11 dias depois, recebendo 63 inscrições de imediato e 26 projetos.

Sonia Souto Silva, terceira e última mulher de Ernesto Silva, recorda-se com saudade do amor do militar, veterinário e médico pela cidade, a quem, segundo ela, ele tratava como a filha que nunca teve. Foto: Vitor Mendonça/ Jornal de Brasília

Amor e dedicação… a Brasília

O amor por Brasília regeu a vida de Ernesto Silva. Tanto que, quando sua mulher rejeitou vir ao Planalto Central, pior para ela. “Aqui, ele casou com a secretária, mas quando se aposentou ela queria voltar para lá”, lembra Sonia Souto Silva, terceira e última mulher do pioneiro. Pior, também, para a segunda esposa de Silva. Dizem os ditados que os sábios aprendem com os erros de terceiros, algo que valeu para Sônia. “Eu que não seria louca de falar que queria sair daqui”, brinca a viúva.

Para ela, caminhar pela terceira capital do Brasil é quase como estar num porta-retratos gigante do falecido companheiro. “É a cidade que ele amou, que ele cultivou com tanto carinho; pode-se falar que era como uma filha para ele, a filha que ele nunca teve”, relembra. Alguns causos do pioneiro ajudam a sustentar a fala da companheira, com quem viveu até a morte, em 2010. Morador da 105 Sul, certa vez flagrou uma viatura estacionada no meio-fio da quadra.

Com o ímpeto de quem ajudou a erguer uma cidade do zero, desceu do primeiro andar e se pôs a discutir com os policiais militares. “Eu estava morrendo de medo, mas ele chegou para eles e disse que o esforço para construir Brasília fora enorme, hercúleo, e os agentes estavam contribuindo para destruí-la”, conta Sônia. Os policiais, em respeito, retiraram o veículo do local onde estacionaram sem qualquer necessidade — ou permissão.

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