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60 Anos, 60 Histórias

O avião decola no Planalto

“Terra de luz Terra-esperança, promessaDe um mundo de paz e de amor”Tom Jobim e Vinicius de Moraes em “Sinfonia da Alvorada”

Redação Jornal de Brasília

20/04/2020 7h01

Olavo David Neto e  Vítor Mendonça
[email protected]

Foram quase dois séculos de fundamentação teórica. Desde o levante de Minas Gerais contra a coroa portuguesa, em 1789, liderado por Tiradentes, pensou-se uma capital interiorizada para o território brasileiro. Apesar dos revoltosos da Conjuração Mineira pensarem na independência da província – e não do país, já que, à época, não havia sentimento nacionalista em relação ao Brasil — e uma capital para a República a ser formada após o desembarque da influência lusitana, o mudancismo nasce na conspiração aurífera, que sequer chegou às ruas. A proposta de transferência só ganha contornos oficiais quando José Bonifácio adere ao pensamento de interiorização da sede administrativa, ainda em 1821.

Passado o período colonial, o Patriarca da Independência volta ao assunto na elaboração da primeira Constituição brasileira, a imperial, de 1824. Rejeitada, a ideia teve apoiadores de peso ao longo do século XIX, como senadores, deputados e o Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen.

Diplomata na Áustria, largou os gabinetes de Viena aos 60 anos e percorreu a cavalo a área que, antes, apontava em simples consultas cartográficas como o local ideal para o centro político do país. Era o planalto goiano, tido pelo também militar e engenheiro como favorável à implantação de uma núcleo de colonização europeu, fundamental para o objetivo de embranquecer a população brasileira.

Os escritos do visconde repercutiram nos salões intelectuais do Brasil monárquico, e quando se erigiu a República, a necessidade de regulamentar a nova forma de governo abarcou também o ideal mudancista. Mesmo com dispositivo constitucional, a nova capital brasileira enfrentou a resistência das lavouras, ainda que com o apoio intelectual e logístico do Exército. Caiu do ordenamento jurídico-político nacional com a ditadura do Estado Novo, do então centralizador Getúlio Vargas. Com a queda do ditador, a quinta Constituição do país em 126 anos de soberania é redigida, novamente com texto fiador da transferência para a área demarcada na década de 1890 por Luís Cruls.

O drible de JK

Findo e outorgado o texto constitucional, 14 anos se fariam necessários para que o Brasil inaugurasse sua terceira capital, a segunda sob a égide da República, e a primeira afastada do litoral. Entre novos estudos, mapeamentos, manobras políticas e um drible cinematográfico em especuladores, em 1956 o terreno nunca estivera tão fértil para construir a nova sede administrativa do Brasil. O coração geográfico nacional, que se esforçava em irradiar sangue para o afastado cérebro, receberia o centro político brasileiro. Assim prometera o candidato do Partido Social Democrático (PSD), Juscelino Kubitschek, o JK, e assim cumpriria o presidente.

Logo após a cerimônia na qual recebera as chaves da cidade, em 20 de abril de 1960, JK abraçou sua mulher, Sarah, as filhas e a mãe. Já dentro do Alfa Romeo fabricado em solo nacional – em cujo capô liam-se as iniciais do homem -, partiram em direção ao Aeroporto Internacional de Brasília, recém-construído, mas ainda o segundo da nova capital. Lá, esperaram o desembarque do cardeal Cerejeiras, representante papal em terras portuguesas. No mesmo voo, a cruz da primeira celebração católica do Brasil, 459 anos antes. Recebida a comitiva religiosa, o destino era o Palácio da Alvorada, onde um pequeno jantar foi oferecido a poucas das centenas de milhares de pessoas que superlotaram os hotéis e as próprias casas dos pioneiros.

Na residência presidencial, ele, sempre sorridente e expansivo, estava calado. Deixou os convidados e se dirigiu às enormes vidraças que servem como parede do prédio. Dali, o anfitrião, pioneiro e tocador de obras admirou a moldura que tornaria Brasília — além de um paraíso arquitetônico — um patrimônio da humanidade. O céu, já famoso pelas horas diurnas, vestira-se no mais elegante negror, pontilhado apenas pelo brilhos do corpos celestes. Traje à rigor para a inauguração de uma cidade-sonho. Era como se o Planalto Central fosse agraciado pelo fim da maior epopeia não-bélica do século XX ao redor do mundo.

Amplamente alinhada ao projeto, a Lua alcançara o plenilúnio na fase final da construção, quando os operários, como de costume, utilizaram-se da iluminação lunar nos contraturnos de trabalho intenso para cimentar os prédios fundamentais da cidade; naquele momento, o satélite minguava em despedida a um Brasil arcaico, deixado para trás a partir da 0h; poucos dias adiante, com a nova capital já em pleno funcionamento, renasceria para abrir outro ciclo. Na passagem de 20 para 21 de abril de 1960, tudo se alinhou perfeitamente para as cerimônias de inauguração.

Horizonte candango em cores

A celebração começaria num palco montado na Praça dos Três Poderes. Então, às 23h30, todo povo sem demora foi lá só para assistir. Celebrada pelo arcebispo brasileiro, dom Hélder Câmara. De frente para ele, numa poltrona, estava o idealizador daquela empreitada, aplaudido efusivamente por todos que lhe tomaram a palavra e se dirigiram ao descampado no remoto interior goiano. Em meio à liturgia, o mesmo sino que dobrou pela morte do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, voltou a soar 168 anos depois. Era o anúncio do dia 21 de abril, que além do dia do inconfidente, tornava-se ali marco da nova capital.

O horizonte candango se preencheu em cores e explosões. Foguetes e gritos se misturavam ao choro incontrolável da multidão. Feita de Marias e Josés esquecidos pelo Brasil, a aglomeração de brasileiros finalmente teve um motivo político para comemorar. Sempre esquecido, o povo tinha agora uma capital para chamar de sua. No assento mais privilegiado da noite, o homem rompia a barreira da emoção e, encolhido, tinha as mãos sobre o rosto. Poucos viram, mas as lágrimas também lhe escaparam. Brasília estava de pé, inaugurada e devidamente ocupada pelos filhos da pátria brasileira, que nem sempre é mãe gentil.

Sem tempo para dormir

Encerrada a solenidade, restava o caminho do palácio para esperar a alvorada. O destino era a cama, mas o festejo se desenrolou até as primeiras horas banhadas de sol, sem descanso. Às 8h, JK hasteou a bandeira, acompanhou a execução do Hino Nacional por músicos do Exército e discursou.

“Diante da nova bandeira, com suas 22 estrelas, saúdo os pioneiros, os que lutaram para que chegássemos ao que somos, e saúdo, principalmente, os filhos dos nossos filhos, para os quais, sem medir esforços e sacrifícios, erguemos as bases da nossa grandeza futura”, proferiu, sendo ovacionado pelos presentes.

No Palácio do Planalto, que também abria as portas naquele 21 de abril, 55 embaixadores vinham cumprimentá-lo pela conclusão da meta-síntese. As Forças Armadas, cujas tropas teimaram em não aceitar sua posse e depois tentaram derrubá-lo, aclamaram o presidente através de oficiais-generais.

JK reuniu seus ministros. Estava devidamente transferido o Poder Executivo nacional. “Deste Planalto Central, Brasília estende hoje aos quatros ventos as estradas da definitiva integração nacional: Belém, Fortaleza, Porto Alegre e, dentro em breve, o Acre”, disse, solene, à equipe ministerial.

Passou, então, pelos populares a caminho do Congresso Nacional, que pela primeira vez possuía um único prédio para ambas as Casas.

Na voz do vice-presidente João Goulart, declarou-se transferido o Poder Legislativo e inaugurada a nova casa da casa do povo. Torturador nas idas do Estado Novo e alinhado ao nazifascismo, o presidente do Senado, Filinto Müller, fez as honras de anfitrião, enquanto o deputado Ranieri Mazzili, presidente da Câmara, fez as apresentações a seus pares.

A maioria dos parlamentares compareceu, inclusive muitos daqueles que eram contrários e combatentes à mudança da capital. Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), renitente crítico feroz ao governo e à construção da nova capital, uma das exceções, ficou no Rio de Janeiro.

Entre homenagens ao fiador daquela aventura e discursos a respeito do simbolismo histórico da edificação da cidade, chegou-se à conclusão de que não havia, de fato, infraestrutura para que Senado e Câmara operassem de imediato do Planalto Central.

Assim, para enfurecer ainda mais os opositores, o Congresso Nacional estabeleceu um recesso legislativo até 2 de maio, quando se iniciaria, de uma vez por todas, o trabalho dos legisladores na capital da República.

Antes disso, o presidente fez questão de exaltar a participação legislativa na empreitada, graças à “habilidade para contornar intransigências e para dissipar resistências pessoais”.

De Brasília para a eternidade

As comemorações se espalhavam pela nova capital. Nos Eixos Rodoviários, as brigadas do Exército, da Marinha e da Aeronáutico desfilavam pomposas, carregando a bandeira nacional pela cidade que, a partir de então, passava a representar os anseios políticos do país representando em dezenas de estrelas. Nos canteiros, os brasileiros comemoravam a finalização de um sonho vendido como impossível por muitos.

Agora, a nação tinha nova casa, e o povo supostamente mais acesso a quem poderia transformar as vidas operárias. Tudo anunciado pela voz grave daquele mineiro que mudou o Brasil.

Entre erros e acertos, JK cravou-se na História do país. No dia 21 de abril, porém, enquanto caminhava com largos sorrisos e sinais de cansaço, ele sabia ter se dividido em dois: o homem, morto 16 anos depois em um controverso acidente de carro em meio à Ditadura Militar, em cujos ombros pesavam uma galopante inflação ao fim do mandato presidencial; e o nome alçado ao panteão dos heróis brasileiros, orgulhosamente afixado em logradouros públicos e placas comerciais na capital da República, onde até hoje se encontram – com duas ou 19 letras – homenagens a Juscelino Kubitschek, construtor do avião para o futuro do Brasil.

AMANHÃ: 60 anos depois, Brasília é um retrato fidedigno do Brasil.

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