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60 Anos, 60 Histórias

De mala e cuia rumo ao planalto

“Eis o produto de nossas angústias, de nossos riscos e do suor de nossas vidas, eis a cidade que o extraordinário Lúcio Costa disse já nascer adulta” Juscelino Kubitschek, discurso na chegada a Brasília em 20 de abril

Redação Jornal de Brasília

17/04/2020 11h19

Atualizada 20/04/2020 16h12

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

O dia 20 de abril é um dos poucos marcos em comum entre Rio de Janeiro e Brasília. Nesta data, em 1960, Juscelino Kubitschek se dirigiu pela última vez ao Palácio do Catete, sede da Presidência na cidade que, por 197 anos, sediou os maiores poderes do Brasil, seja enquanto capital colonial, enquanto metrópole do império brasileiro ou berço da República nacional. Acompanhado da esposa, Sarah, das filhas Márcia e Maria Estela e da mãe, Júlia, o presidente chegou ao prédio histórico às 9h. Na calçada do edifício, ao contrário do que o próprio JK esperava, uma aglomeração aguardava a primeira-família brasileira.

Pouco antes, o chefe do Executivo e a primeira-dama receberam da Câmara Municipal do Rio o título de Grandes Beneméritos da cidade. Apesar de arrancar dali os maiores poderes do país, Juscelino propiciou algumas transformações indispensáveis ao funcionamento do antigo município neutro, e inclusive assinou as concessões de crédito para que a Cidade Maravilhosa não se quedasse inviável quando da sua transformação em Estado da Guanabara. O povo carioca, a despeito da perda do status de capital, aparentemente louvava o presidente.

No Catete, a família Kubitschek foi recebida pelos funcionários palacianos logo no térreo. De lá, o líder da nação transferiu a solenidade ao Salão Nobre do palácio – o mesmo no qual, quase 16 anos antes, o próprio JK velara o corpo de Getúlio Vargas – e anunciou que aquela oportunidade era a última reunião de um chefe do Estado brasileiro com sua equipe no palácio de 144 anos. “Agradeci a todos a colaboração que me haviam prestado e convidei – frisando que era um convite e não uma ordem – a prosseguirem em suas funções, mas dali diante em Brasília”, narra Juscelino em suas memórias.

Um silêncio tomou o salão palaciano ao fim da reunião. Em clima de despedida, todos os funcionários se retiraram. Juscelino desceu a escadaria junto com a família. No saguão do edifício, a louvação ao político já se apoderara da calçada, e quando o presidente foi ao encontro da população, viu-se cercado.

“Assim, aquela partida, que eu esperava fosse simples e cordial convertera-se em manifestação popular”, descreve. Homem de gestos simbólicos, JK quis voltar à entrada do palácio para um último ato presidencial naquela construção.

No portal, puxou as duas metades do pesado portão de ferro e as juntou, lacrando solenemente o Catete. O fim de uma era finalmente se anunciava. “Naquele momento, o Catete deixaria de ser a sede do governo. Estava fechado simbolicamente. Dali em diante, a residência oficial do presidente da República seria o Palácio da Alvorada, em Brasília”, cravou JK. Dentro do carro, o comandante supremo da nação acompanhava a marcha dos apoiadores, em romaria de despedida. O veículo, então, rumou à base aérea do Galeão.

A Esquadrilha da Fumaça cruza o céu azul de Brasília saudando o nascimento da nova cidade.

O aconchego do Catetinho

O avião presidencial desembarcou no Aeroporto Internacional de Brasília às 12h30. Juscelino, Sarah, Maria Maristela e Júlia foram recebidos “por milhares de pessoas”, conforme conta César Prates em Do Catetinho ao Alvorada, espécie de diário da construção.

De lá, seguiram em direção à recém-criada cidade-satélite do Gama, mas desviaram um pouco antes. O destino era o “Palácio de Tábuas”, que tantas vezes abrigara o idealizador de toda aquela empreitada. “Fora dali que comandara a grande batalha”, comenta Juscelino em Por Que Construí Brasília.

O Catete fora lacrado à Presidência, mas seu xará no diminutivo no Planalto Central seria, novamente, abrigo para o homem mais poderoso da República. O Catetinho – construído em dez dias de 1956, quando nem as linhas da cidade existiam – trouxe a Juscelino as lembranças do início da epopeia candanga. Conta ele que o sentimento de incredulidade ainda o possuía. “Em torno, estendia-se a cidade que, num esforço quase sobre-humano, conseguira construir em três anos e meio”, relata. Era apenas o início de um dia emotivo.

Às 16h, o Alfa Romeo fabricado no Brasil – personalizado com as iniciais do presidente no capô – deixou a região do Gama e cortou o cerrado em direção ao Plano Piloto. Ao se aproximar da Asa Sul, o veículo foi “escoltado” pela Esquadrilha da Fumaça da Força Aérea Brasileira (FAB), cujas aeronaves realizavam acrobacias festivas no incomparável céu brasiliense. Saudavam o chefe do Executivo nacional, autor daquela manifestação da vontade do povo brasileiro, e saudavam Brasília, o símbolo inaugural de uma época em que o Brasil, nas palavras do crítico literário Roberto Schwarz, “estava irreconhecivelmente inteligente”.

Os jornais pareciam incrédulos: JK conseguira o que parecia impossível.

Estrela nova no pavilhão

Cerca de 50 mil pessoas acudiram ao Planalto Central naquele 20 de abril de 1960. E era esse o povo que se aglomerava às margens do Eixo Rodoviário Sul para receber a comitiva do presidente que prometera findar aquele período a partir de uma nova capital. À medida em que o carro de JK ganhava a cidade, mais o futuro se aproximava do presente, que, por sua vez, distanciava-se do passado. O destino do automóvel era a Praça dos Três Poderes, símbolo máximo do centro político construído sobre o Planalto Central. No triângulo equilátero republicano, o dono do sonho receberia os louros da iniciativa. Na entrega das chaves de Brasília, cerimônia organizada pela Novacap para simbolizar a conclusão das obras, Israel Pinheiro, presidente da companhia, foi tomado pela emoção. Ao passar a palavra a Juscelino, escorria-lhe o sentimento pela face. E, quando JK deu um passo em direção ao púlpito, a multidão candanga irrompeu em gritos e aplausos. Amontoados, os populares agitava chapéus, lenços de pano e as próprias mãos em homenagem ao presidente que lançara o desafio completado naquele instante. Com a voz embargada, Kubitschek iniciou o discurso às 17h50 daquele 20 de abril, véspera do futuro do nação.

O presidente da República pediu silêncio aos interlocutores, pigarreou para ajustar a voz e se abriu ao povo que alçara à História. “Brasília só pode estar aí, como a vemos, e já deixando entender o que será amanhã, porque a fé em Deus e no Brasil nos sustentou a todos nós, a esta família reunida, a vós todos, candangos, a que me orgulho de pertencer”, iniciou o chefe de Estado. “Viestes”, prosseguiu, “por estradas largas e ásperas, porque ouvistes, de longe, a mensagem de Brasília; porque vos contaram que uma estrela nova iria acrescentar-se às outras vinte e uma da bandeira da pátria”, conclamou JK. À medida que o presidente proferia seu discurso, o sol baixava mais e mais no horizonte candango, que cerca de três anos e meio depois deixara de ser apenas cerrado para se tornar uma metrópole. Como de costume, as partículas da poeira rubra do Planalto Central tingiam o céu de vermelho-alaranjado, espécie de homenagem celestial aos proletários que tombaram na missão de alçar o país ao futuro. Pouco depois, já não era possível ler anotações numa área que, até hoje, é mal iluminada. Restava ao mestre do improviso estatal tirar da própria mente as palavras finais daquela fala.

Crepúsculo do Brasil arcaico

“Ninguém vos subtrairá a glória de terdes lutado nesta tremenda batalha. Não esqueceria jamais, trabalhadores brasileiros de todas as categorias, a quem me sinto indissoluvelmente ligado. Eis o produto de nossas angústias, de nossos riscos e do suor de nossas vidas, eis a cidade que o extraordinário Lúcio Costa disse já nascer adulta”, finalizou o mineiro. Emocionado, cumprimentou muitos dos presentes. Todas à espera da inauguração que, supostamente, encerraria um ciclo de constantes derrocadas nacionais, de sucessões autoritárias e oligárquicas, de uma nação a serviço de interesses vis, pequenos e individuais.

Fosse a uma família imperial ou a um grupo econômico, a história brasileira se resumia a abastecer poucos cofres às custas de muitas vidas. Uma nação edificada à base da escravidão, guiada pelo patriarcado e por uma miscigenação forçada, fruto do estupro da mulher nativa ou do abuso da mulher negra.

Esse país, na cabeça do povo, ficaria para trás. Dias melhores se anunciavam enquanto os tempos sombrios vividos na década anterior quedavam-se, cada vez mais, como memória, e não como sentimento presente. Era o renascimento – era o que se acreditava – da pátria amada.

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