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60 Anos, 60 Histórias

Cruls, um belga no Planalto Central

“Todo fim de ano é fim de mundoE todo fim de mundo é tudo que já tá no ar (…)Mas da próxima vez que eu for a Brasília. Eu trago uma flor do cerrado pra você”Caetano Veloso em “Flor do Cerrado”

Olavo David Neto

11/02/2020 8h43

E stava escrita e aprovada a primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil. Entre aparentes avanços e retrocessos, a Carta Magna promulgada a 24 de fevereiro de 1891 estabelecia a interiorização da capital. E, ainda, reservava uma área de 14.400 km² para a empreitada. Faltava, porém, delimitar essa área, baseado sobretudo em estudos topográficos e geológicos. Para isso, o Brasil contaria com um estrangeiro que, como definiu Jarbas Silva Marques, é “muito mais brasileiro que alguns brasileiros”.

Primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca mostrou o viés autoritário logo de cara, ao dissolver o Congresso com apenas um ano de existência. Derrubado pela primeira Revolta da Armada, em 1891, Deodoro deu lugar a outro marechal, Floriano Peixoto, que, assim como o antecessor, era veterano da Guerra do Paraguai, citada na sétima reportagem deste especial como um dos estopins para uma reestruturação sócio-política e territorial no Brasil.

Na abertura da 2ª sessão ordinária da 1ª legislatura do Congresso Nacional, em 1892, o novo presidente apontou certa urgência na transferência da sede do Poder Público brasileiro. “Reputando de necessidade inadiável a mudança da Capital da União, o governo trata de fazer seguir para o planalto central a commissão que deve proceder à demarcação da área e fazer sobre a zona os indispensáveis estudos”, escreveu o marechal. Três dias depois, a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil conheceria o seu líder, o astrônomo belga Luiz Cruls.

Desde a Bélgica, um amante do Brasil

Nascido em Diest, na Bélgica, Louis Ferdinand Cruls se tornou engenheiro civil em 1868, e quatro anos depois foi admitido na Academia Militar belga. Lá, teve relatos do país onde viveria a maior parte da vida — e entraria para a História —, graças a sete colegas brasileiros, em especial o engenheiro Caetano Furquim D’Almeida, conforme Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, em Luiz Cruls: o homem que marcou o lugar (2003).

Sem entender como Pernambuco e Paraná, a 2.318 km um do outro em linha reta, hasteiam a mesma bandeira — já que a distância é quase 11 vezes maior que um traço de Torgny a Poppel, cidades mais ao sul e ao norte, respectivamente, no território belga —, o engenheiro militar cultivou uma admiração platônica pelo Brasil. “O Cruls era um aflito por entender essa distância toda dentro de um mesmo país”, relata o cineasta Pedro Jorge de Castro, especialista na biografia do astrônomo.

Em 1874, motivado pela paixão além-mar, Luiz Cruls pede afastamento do exército belga e zarpa em direção à América do Sul. Queria, como o personagem da canção de Caetano Veloso, colher no Planalto Central “uma flor do cerrado”.

“Pouco depois do navio deixar o porto de Bordeaux, Cruls conheceu um passageiro de aspecto muito simpático”, narra Mourão na biografia do astrônomo europeu. Essa figura era Joaquim Nabuco, que dava os primeiros passos na carreira diplomática, ainda antes de se tornar um célebre abolicionista.

A dupla desembarcou no Rio de Janeiro 22 dias depois. O jornal O Globo de 27 de setembro daquele ano relatou, na sessão Notícias da Europa, a chegada da embarcação, que servia como ponte para acontecimentos no Velho Mundo. “O paquete francês Orénoque, entrado ontem de Bordeaux e escalas, trouxe-nos datas de Paris até 3 e de Lisboa até do [mês] corrente”, diz a nota. Nesta época, o imperador D. Pedro II buscava um novo especialista em astros para compor o quadro do Imperial Observatório (hoje Observatório Nacional). Nabuco, então, apresentou à majestade brasileira o imigrante, que logo foi aceito para o cargo. No ano seguinte, ascendeu a astrólogo-adjunto da instituição, e, em 1881, tornou-se diretor, segundo Rogério Mourão.

A Comissão Exploradora da Nova Capital

A “Missão Cruls”, conforme batizada em homenagem ao líder, reuniu 21 especialistas (dentre cartógrafos, geógrafos, geólogos, botânicos, naturalistas, engenheiros e médicos) e saiu do Rio de Janeiro em 9 de junho de 1892. Carregada com cerca de 10 toneladas de equipamentos postos em 206 caixas, a comissão partiu da então capital da República em direção a Uberaba, no triângulo mineiro, através da linha de trem Mogiana. Do interior de Minas Gerais, a viagem se deu em lombos de burro, guiando-se pelas estrelas tanto estudadas por Luiz Cruls.

A equipe da missão Cruls, que demarcou a área da nova capital, passou por Pirenópolis

A viagem de 503 quilômetros até Pirenópolis, já em Goiás, durou 22 dias, passando por Catalão e as atuais Ipameri e Bonfinópolis. Luziânia (então Santa Luzia) e Formosa (à época, Vila Formoza de Imperatriz) marcaram o ponto onde a equipe se dividiu para seguir com a demarcação. Desta jornada surgiu um estudo, conhecido por Relatório Cruls, que foi encaminhado ao governo federal. Essas minúcias, porém, serão vistas na reportagem de amanhã.

Observador da República

Quando deflagrada a Segunda Revolta da Armada, em 1893, Luiz Cruls estava no Imperial Observatório tocando o trabalho que o consagrou. Do alto do Morro do Castelo — destruído na década de 1930 e usado para o aterro sanitário da praia de Copacabana —, o belga-brasileiro tinha visão privilegiada dos navios sublevados que bombardeavam o Rio de Janeiro em protesto contra a ascensão de Floriano Peixoto, como mencionado na primeira reportagem deste especial.

Uma das cargas que detiveram os revoltosos se deu graças à contribuição de Cruls, que repassou ao presidente a localização das embarcações. “Depois, houve um canhoneio da Marinha que destruiu o Observatório, que depois foi para São Cristóvão”, afirma o jornalista, pesquisador e historiador Jarbas Silva Marques.

Mesmo assim, o motim foi abafado e o episódio marcou a consolidação do novo regime, proclamado quatro anos antes e cujo primeiro chefe fora derrubado também por ação de marinheiros amotinados.

Louis Ferdinand Cruls, um belga apaixonado pelas grandezas do Brasil

Essa foi mais uma das contribuições do astrônomo à forma de governo, que lhe rendeu uma patente mais alta dentro da Força Armada. “Por essa participação ele recebe, como homenagem da República, o título de tenente-coronel”, aponta Silva Marques.

 

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