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60 Anos, 60 Histórias

Café com leite engasga o mudancismo

“Vocês que fazem parte dessa massaQue passa nos projetos do futuro (…)Ê ô ô vida de gadoPovo marcado ê, povo feliz!”Zé Ramalho em “Admirável Gado Novo”

Olavo David Neto

14/02/2020 9h04

A o fim da República das Espadas, período que engloba os governos de Deodoro da Fonseca (1889-1892) e Floriano Peixoto (1892-1894), ambos marechais, foi eleito — pela primeira vez por voto direto, em uma eleição conturbada — o candidato paulista Prudente de Moraes. No pleito, 203 candidatos concorriam à Presidência, com destaque para Prudente de Moraes, do Partido Republicano Paulista (PRP), e Afonso Pena, do Partido Republicano Mineiro (PRM).

Somente cerca de 2,2% da população brasileira — calculada em 14 milhões de pessoas pelo Censo de 1890 da Diretoria Geral de Estatística (DGE) — foi às urnas, de acordo com José Murilo de Carvalho em Cidadania no Brasil: um longo caminho (2001), sem a garantia do voto secreto. Assim, os resultados são alvo, até hoje, de contestações. O quantitativo que elegeu Prudente de Moraes vai de 276 mil, estimativa de Walter Costa Porto em O Voto no Brasil, a 296 mil votos, em números oficiais. Ou seja, os outros 202 candidatos mal chegaram a 12% dos votos válidos.

Chegava ao poder, pela primeira vez, um representante direto do agronegócio, sobretudo do café paulista. Era a entrada do Brasil no período conhecido como República Oligárquica, ou do Café com Leite, alcunha que definia a preponderância de São Paulo (café) e Minas Gerais (leite) na política nacional. Nesse meio tempo, os deputados federais Lauro Müller, Urbano Gouvêa e Nogueira Paranaguá entregaram o Projeto de Lei (PL) nº 60/1895, que tornava federal a área demarcada pela primeira Missão Cruls.

No papel, não na prática

Mesmo assim, uma das provas mais contundentes do desinteresse do Executivo na mudança veio logo no início do governo Moraes, com o esvaziamento do cofre da Comissão de Estudos da Nova Capital, destinada a encontrar o local exato dentro do quadrilátero de 14.400 km² demarcado no Planalto Central. Tanto é que a segunda Missão Cruls entregou apenas um Relatório Parcial, em 1896, que, antes de descrever as análises da missão, empreendida de junho de 1894 a dezembro de 1895, fez um apelo ao ministro nos Negócios, da Indústria, Viação e Obras Públicas Antônio Coutinho dos Santos Pires.

“(…) Torna-se indispensável que o Congresso Nacional, tomando em consideração os altos interesses que se ligam ao cumprimento do art. 3° da Constituição, não deixe de conceder anualmente os créditos necessários para o regular andamento (…) dos estudos da Nova Capital”, apela Cruls. O governo, porém, não se solidarizou com aqueles que passaram quase 18 meses em expedição, e, desta forma, a Comissão de Estudos da Nova Capital não logrou sucesso em apontar o local exato da empreitada.

“Por uma questão de justiça histórica, o Exército brasileiro sempre participou do mudancismo”, afirma o pesquisador, historiador e jornalista Jarbas Silva Marques. “Enquanto isso, o primeiro presidente civil foi o responsável pelo corte de verbas. Era o interesse do café com leite em manter a capital litorânea”, aponta o ex-diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.

Apesar dos pesares, é desta segunda imersão no Planalto Central o relato do botânico Auguste Glaziou, às margens do que hoje é o Lago Paranoá, afirmando ter ali um lago ancestral, e que um simples represamento levaria a água a reocupar a região, como visto na 11ª reportagem desta série.

Fracassada industrialização

Há contradições na ascensão do primeiro presidente civil ao poder. Eleito, sobretudo, pelo poder agropecuário, Prudente de Moraes era visto por setores republicanos liberais, dos quais também fazia parte, como um feixe de industrialização para o país.

Para incentivar a acumulação de capitais necessária para empreendimentos fabris, o governo aprovou uma medida econômica conhecida como Encilhada, que consistia, basicamente, na emissão de papel-moeda para incentivar a circulação de capital e por concessões indiscriminadas de crédito.

Ao contrário do previsto, as finanças brasileiras entraram em forte declínio com a desvalorização da moeda corrente — o mil réis —, que trouxe consigo um árduo processo inflacionário, além de representar a bancarrota de uma série de empresas e do embrionário desejo de industrialização. Além disso, veio a galope a insatisfação dos arautos cafeeiros com o projeto de modernização que os enfraqueceria econômica e politicamente.

Com isso, mais e mais cafeicultores e criadores de gado passaram a apoiar candidatos ligados à atividade rural, garantindo a continuidade de um governo favorável ao primeiro setor da economia. A sucessão presidencial ficou novamente em São Paulo com a eleição de Campos Sales, que assume em 1898.

É neste cenário que a batalha entre parlamentares e o Executivo ganha mais um episódio. Em 11 de outubro de 1899, o deputado do então Distrito Federal Sá Freire apresenta o Projeto de Lei 206/1899, numa solução à mineira. Pelo projeto, estava autorizado o governo a transferir a capital para o interior de Minas Gerais, “ou para outro ponto que julgar conveniente no planalto central”.

“Farinha pouca…”

A proposta de Sá Freire foi a última pelos 12 anos seguintes. Apesar do suor de mudancistas, o movimento perde força na virada do século, e passa toda a primeira década sem qualquer menção no parlamento nacional. Neste período, quatro presidentes assumiram o cargo, todos sob o controle da Constituição de 1891, que, no artigo 3º, previa a transferência da sede do poder brasileiro. O paulista Rodrigues Alves (1902-1906), o mineiro Afonso Pena (1906-1909), Nilo Peçanha — “o mais paulista dos cariocas (1909-1910) — e o gaúcho ligado a São Paulo Hermes da Fonseca (1910-1914) — o primeiro militar-presidente desde 1894 — sequer deram atenção ao dispositivo constitucional.

Atualmente, com o avanço da agropecuária cerrado adentro, é difícil imaginar que latifundiários recusassem um centro de poder em meio a tantas terras férteis — e inclusive apontadas por Glaziou como propícias à criação de gado —, mas era, de fato, o que acontecia. Aos olhos de paulistas e mineiros, tirar a capital do Rio de Janeiro, portuário e fronteiriço com ambos os estados, acarretaria um prejuízo aos negócios.

Era a lógica do egoísmo. Dado como estava — e como sempre fora —, o Brasil tinha um eixo bem definido, deslocado para sudeste, a despeito da extensão continental do país. As políticas, as obras, as artes e qualquer outro aspecto da vida pública brasileira se limitava, ou se direcionava, aos três estados supracitados. Assim, o projeto de interiorização da capital não se encaixava no horizonte das oligarquias que elegeram, sucessivamente até 1930, seus representantes para a Presidência de uma República não-representativa.

SEGUNDA-FEIRA: Em Planaltina, a pedra fundamental

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