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60 Anos, 60 Histórias

Às armas contra Brasília

“A primeira Coca-Cola foi,Me lembro bem agora,Nas asas da Panair.A maior das maravilhas”Milton Nascimento e Fernando Brant em “Saudade dos Aviões da Panair”

Redação Jornal de Brasília

08/04/2020 11h11

Atualizada 09/04/2020 0h02

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

Se gerir o Brasil atualmente parece uma árdua missão, imagine-se numa década conturbada como a de 1950. Após viver uma ditadura por oito anos, o país aderiu novamente à democracia por meio de um general, Eurico Gaspar Dutra, e, cinco anos depois, a população reconduziu o ex-ditador ao Palácio do Catete através das urnas. Do governo, marcado por crises e ameaças, com forte oposição midiá tica e parlamentar, Getúlio Vargas só sairia morto, como prometera. Em meio à crise da República do Galeão — abordada na reportagem 19º deste especial —, o tiro no peito dado pelo próprio presidente incendiou o país.

Na sucessão, quatro políticos assumiram a cadeira mais importante do país num período de dois anos. Com Carlos Luz, porém, a normalidade do Estado Democrático de Direito se viu ameaçada. Presidente da Câmara dos Deputados, o parlamentar chegou à chefia do Executivo após o licenciamento do vice de Vargas, Café Filho, por motivos de saúde. Na Presidência, Luz conspirou por um golpe eleitoral que impediria a posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, eleitos em outubro de 1955, e a atitude lhe custou o cargo e marcou o período mais breve de um chefe de Estado no Brasil: três dias.

A posse de JK só foi garantida pela articulação político-militar do marechal Henrique Teixeira Lott, no episódio conhecido por Movimento 11 de Novembro. O mote da campanha veio de um discurso proferido pelo coronel do Exército Jurandir Mamede, que atacou a herança política de Getúlio e instigou as Forças Armadas a impedirem a assunção da chapa aos respectivos cargos. A reação de Lott foi imperiosa. Pediu exoneração do Ministério da Guerra e posicionou tropas no Rio de Janeiro, inclusive em frente ao palácio presidencial. Luz, então, foi deposto.

O vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, assumiu o posto vago e reconduziu o militar à pasta. Assim, estava garantida a posse de Juscelino e Jango, que chegaram ao Palácio do Catete a 31 de janeiro de 1956. Era a vitória da ala legalista das Forças Armadas. A oposição à posse se tornou apenas um prelúdio do que viria pela frente para o governo, que tinha projetos nacionais-desenvolvimentistas, mas era tido com viés comunista pelos opositores, sobretudo os políticos da União Democrática Nacional (UDN) de Lacerda.

Do Pará, o movimento subversivo

Já no cargo, JK impunha as primeiras medidas da agenda que o elegeu. Nesta época, encarregara ao deputado Santiago Dantas a redação do texto a ser enviado ao Congresso Nacional para viabilizar a construção da nova capital – Brasília, segundo o artigo 33 da Mensagem de Anápolis, vista na reportagem 22 desta séria. Ainda se acostumando ao gabinete, o novo mandatário da nação teve de enfrentar outra revolta, desta vez da Aeronáutica. Em 10 de fevereiro, o major Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão lideraram oficiais insatisfeitos em voos a partir do Campo de Afonsos, base aérea no Rio de Janeiro e rumaram ao Pará.

Na cidade de Jacareacanga, a cerca de 1.200 km a sudoeste de Belém, os revoltosos se aquartelaram e organizaram a resistência ao governo federal. Pouco mais de uma semana depois, Cachimbo, Belterra, Itaituba e Santarém, no Pará, e Aragarças, em Goiás, já estavam sob controle rebelde. Além da suposta orientação vermelha de JK-Jango, os militares sublevados reivindicavam a deposição de Vasco, ministro da Guerra, por medo de represálias oriundas do episódio dado no ano anterior. Na repressão à revolta, o major Paulo Victor da Silva, enviado com tropas para combater o motim, acabou se juntando ao movimento.

E esta foi uma das maiores dificuldades da União no enfrentamento ao golpe. Oficiais enviados para combater a rebelião se recusavam a atirar contra irmãos de armas, mesmo sob ordens superiores. No 19º dia de levante, 29 de fevereiro, uma investida deteve Veloso e desarticulou o movimento. Alguns revoltosos fugiram para a Bolívia, onde se exilaram. A situação requeria uma solução definitiva, que eximisse de responsabilidade um lado e outro dos insurgentes. Juscelino, então, solicitou ao Congresso Nacional que concedesse anistia aos rebelados, e, em 23 de maio, o Senado emitiu o Decreto Legislativo nº 22 daquele ano.

Perdão governamental

No texto, assinado pelo presidente em exercício da Casa, Apolônio Salles, o artigo 1º concedeu perdão amplo e irrestrito “a todos os civis e militares que direta ou indiretamente se envolveram, inclusive recusando-se a descumprir ordens de seus superiores, nos movimentos revolucionários ocorridos no país a partir de 10 de novembro de 1955 até 1 de março de 1956.” Ou seja, com uma única tacada, o governo abrangeu tanto o levante que garantiu a posse do presidente quantos os que atentaram contra o mandato do chefe do Executivo no perdão estatal.

Desta forma, estavam isentos os revoltosos de Jacareacanga, do 11 de Novembro e os liderados pelo brigadeiro Eduardo Gomes, derrotado por Getúlio Vargas nas eleições de 1950. No breve governo Luz, Gomes ascendeu a ministro da Aeronáutica, mas caiu junto com o chefe e viu o colega de patente Vasco Alves Seco assumir a pasta na vitória da campanha legalista. A Juscelino, o gesto tinha clara motivação política. “Por ocasião do episódio de Jacareacanga (…), ao invés de punir os sediciosos, concedi-lhes anistia”, relata JK em Por Que Construí Brasília.

Conforme escreveu o ex-presidente, as medidas “expressavam um sincero desejo de pacificar o país, traumatizado pelos acontecimentos que se seguiram ao suicídio do presidente Getúlio Vargas”. Mesmo com o passado deixado para trás, novamente as Forças Armadas se levantaram contra Juscelino, desta vez com o objetivo de travar o andamento da meta-síntese de JK — e muito mais próximos a ela.

Linhas aéreas clandestinas

Perdoado, o major Haroldo Veloso retornou ao Brasil e retomou as atividades dentro da Força. Entre 1956 e 1959, ascendeu a tenente-coronel da Aeronáutica e gozava, ainda, de certo prestígio nas bases aéreas. No último mês de 1959, enquanto os candangos batiam martelos e substituiam o barro rubro por concreto e mármore brancos, o líder de Jacareacanga, mais uma vez, voltou-se contra o Comandante Supremo da instituição à qual servia. Desta vez, porém, não era o líder. No dia 2, o também tenente-coronel João Paulo Moreiro Burnier agitou a tropa contra os “forças comunistas” que governavam o Brasil, segundo os rebeldes.

À época um simples “foca” — jargão jornalístico para jovens repórteres —, Jarbas Silva Marques cobriu a rebelião da Aeronáutica, cuja motivação, segundo o jornalista, era a sanha imperialista em derrubar o avião do cerrado. “O militares de extrema-direita da Aeronáutica eram totalmente ligados aos interesses internacionais”, afirma. “Os americanos, os franceses, os ingleses e os belgas queriam impedir a construção de Brasília”, completa o ex-diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. E se empenharam, os revoltosos.

Três aviões Douglas C-47, aeronave militar da Segunda Guerra Mundial utilizada para transporte de tropas e cargas, seguiram do Rio de Janeiro para as margens do Rio Araguaia, em Goiás, enquanto de Belo Horizonte partiu um Beechcraft particular. Outra seção dos golpistas sequestrou um avião comercial da Panair e se juntou ao núcleo rebelado. “É o primeiro sequestro de avião feito no mundo”, lembra Jarbas. O plano dos rebeldes era bombardear os palácios presidenciais e voltar a ocupar as bases de Jacareacanga e Santarém, tal qual três o fizeram em 1956.

Aragarças era, e ainda é, uma pacata cidade. Em 1959, com apenas seis anos de vida, contava com pouco mais de três mil habitantes – hoje, são cerca de 20 mil. O pequeno aeroporto da cidade, feito para aeronaves mono ou bimotores, de porte inferior, recebeu os cinco aviões clandestinos e lhes serviu de quartel. Os moradores, ao verem tamanha movimentação numa instalação (e numa cidade) tão quietas, cercaram a base dos revoltosos. Tiveram poucos dias para fazê-lo, a bem da verdade.

Quase 36 horas depois do início do motim, as forças do governo já tinham conhecimento do movimento e já tomava medidas de repressão.

Sementes para um golpe definitivo

Os próprios rebelados não conseguiram expandir a rebelião, que se limitara a Aragarças, e, quando forças legalistas bombardearam o aeroporto e destruíram um avião da frota rebelde, os líderes do episódio fugiram em direção ao Paraguai, à Bolívia, e à Argentina. Desta vez, não houve remissão, mas mesmo assim muitos dos envolvidos voltaram ao Brasil tranquilamente no mandato de Jânio Quadros, eleito em 1960 e empossado em janeiro de 1961. Neste ano, o Senado recebeu uma proposta de anistia apresentada por Filinto Muller, renomado torturador e chefe de polícia da ditadura do Estado Novo e agora senador.

Dois anos depois, a proposição acabou rejeitada sem qualquer discussão a respeito. O curso dos acontecimentos, porém, levaria os revoltosos, sobretudo o tenente-coronel — futuro brigadeiro — Burnier. Em 1964, responder pela tentativa de golpe contra Juscelino não se postava como preocupação. “Depois, todos eles viraram torturadores na ditadura civil e militar de 1964. A começar pelo brigadeiro João Paulo Burnier”, relembra Jarbas, preso e torturado pelo Estado brasileiro durante dez anos.

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