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60 Anos, 60 Histórias

A visita do presidente americano

“O Brazil não conhece o Brasil, O Brazil nunca foi ao Brasil, O Brazil não merece o Brasil, O Brazil tá matando o Brasil”. Aldir Blanc e Maurício Tapajós em “Querelas do Brasil”

Redação Jornal de Brasília

15/04/2020 10h20

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

Antes da elevação do Rio de Janeiro a estado da Guanabara e também da lei que estipulou a organização política do novo Distrito Federal, em fevereiro de 1960, uma visita ao canteiro de obras de Brasília recrudesceu a construção da cidade. O presidente norte-americano, Dwight Eisenhower, solicitou a Juscelino Kubitschek um tour oficial pelo Brasil, em especial pelo Rio de Janeiro e por São Paulo, ao que o chefe de Estado brasileiro aceitou, com a condição de que o colega passasse pelo Planalto Central. Após idas e vindas e o pé de JK fincado no chão, a Casa Branca preparou os detalhes e abasteceu o Air Force One.

Ter o aval do líder da nação mais poderosa do globo, ou pelo menos da parte ocidental do planeta, em relação à nova capital era uma oportunidade que Juscelino jamais perderia. “Ou o general Eisenhower vem a Brasília, ou não será bem-vindo no Brasil”, vociferou aos assessores da Casa Branca, que viam na passagem pela capital em construção uma brecha no esquema de segurança que poderia expor o chefe do Executivo estadunidense. Acertado o desembarque no Planalto Central, logo a embaixada do país, responsável pelo bem-estar de Eisenhower no Brasil, encaminhou uma lista com diversas exigências.

Assim, em 23 de janeiro, o avião presidencial norte-americano estava no comboio que desembarcou no Aeroporto Internacional de Brasília. A ausência do anfitrião, porém, reteve o desembarque. Dez minutos atrasados, o presidente brasileiro entrou às pressas no saguão do aparelho e, assim, o cerimonial teve continuidade.

“O atraso não fora minha culpa”, exime-se Juscelino. “O avião de Eisenhower pegara ventos favoráveis e chegou com antecipação de meia hora”, completa JK em Por Que Construí Brasília.

Com as escusas aceitas pelo colega, Juscelino o acompanhou no carro oficial e, enfim, os dois presidentes passearam por Brasília. Entre o barro e o concreto, a vista da nova cidade encantou o presidente líder do bloco capitalista no mundo.

Às margens do Palácio do Alvorada, onde se hospedaria, Eisenhower estava incrédulo. “Como foi possível fazer tanta coisa em apenas dois anos, presidente?”, questionou, equivocando-se no tempo de construção da terceira capital brasileira, cujas obras começaram em 1956. A comitiva do presidente dos Estados Unidos ocupou todo o Brasília Palace Hotel.

Ainda em janeiro, quando a viagem foi confirmada, a embaixada norte-americana solicitou ao Itamaraty – ambos ainda sediados no Rio de Janeiro – o equipamento logístico para abrigar a comitiva do presidente Eisenhower. Modernos para época, 20 teletipos foram comprados junto à Siemens, na Alemanha. Quando da chegada do líder estadunidense, os aparelhos já estavam em Brasília, e pela primeira vez, radiofotos – sistema que transforma imagens em simples linhas de pontos claros e escuros, permitindo, assim, a propagação por ondas de rádio – foram enviadas a partir do Brasil.

O equipamento foi instalado na Escola Classe 307/308 Sul, prédio que serviu de base à imprensa norte-americana que desembarcou em Brasília junto à comitiva de Dwight Eisenhower. Lá, além do de radiofoto, aparelhos de Telex – o e-mail da época – e telefones foram disponibilizados aos jornalistas estrangeiros ao lado da Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima.

O recém-inaugurado Brasília Palace abrigou a comitiva dos EUA

Interesses bilaterais

Após o conflito mais traumático da História, finalizado em 1945, a Guerra Fria dividiu o mundo em dois. De um lado, a porção capitalista, liderada pelos Estados Unidos; de outro, a parcela comunista do planeta, que se guiava a partir da União Soviética. Entre as duas potências estava o resto do globo, buscando auxílio em qualquer porta que se abrisse a eles. E qualquer movimentação, de um extremo ao outro, causava enorme alvoroço. Era o caso de Cuba, que no ano anterior à visita rebelara-se contra o regime ditatorial e americanófilo de Fulgêncio Batista. Inclusive o líder dos revolucionários, o então primeiro-ministro Fidel Castro, adiantara-se a Eisenhower e visitara Brasília ainda em 1959.

A aproximação de um vizinho com o inimigo deixou os Estados Unidos em polvorosa. Além dos bloqueios e sanções ao arquipélago pelo levante nacionalista, os norte-americanos recrudesceram a campanha anticomunista na América Latina. Juscelino, porém, tinha outras estratégias que não a guerra ideológica e a corrida belicista. O desenvolvimentismo aplicado ao país, conforme exaltava JK, deveria se repetir em todo o Cone Sul, inclusive incentivado e patrocinado pela potência capitalista. Era, segundo o chefe de Estado sul-americano, a melhor forma de aumentar a zona de influência estadunidense ao sul do México.

Após um breve passeio de helicóptero – durante o qual Eisenhower pôde admirar o Congresso Nacional e a Praça dos Três Poderes nos últimos retoques, a Esplanada dos Ministérios na imensidão colossal, todos emoldurados pelo barro vermelho do cerrado goiano -, os dois presidentes desceram no Eixo Monumental, onde se aglomeravam populares.

Em discurso, Juscelino defendeu uma iniciativa de seu governo para a região. A Operação Pan-Americana, dedicada ao fomento das economias locais pelas maiores potências, sobretudo os Estados unidos. “Não queremos apenas ser teoristas do desenvolvimento; mas mostrar, com a nossa tenacidade e exemplo, que agimos conforme pregamos”, proferiu Kubitschek.

Onde assino?

As táticas de Juscelino surtiram certo efeito. Após a manifestação, leu-se a Declaração Conjunta de Brasília, “que reafirmava a determinação das duas nações de defender as liberdades democráticas, incentivar a harmonia no âmbito da comunidade interamericana, manter os princípios da solidariedade política e econômica (…), e lutar para que pudessem ser concretizados os ideais consubstanciados na Operação Pan-Americana”, conforme escreve Juscelino. Depois das celebrações políticas, um coquetel teve lugar no Alvorada para a representação norte-americana, e as conversas se multiplicaram.

Puxando Eisenhower de lado, bem ao estilo JK, o presidente brasileiro discorreu novamente sobre a importância do pan-americanismo que tanto defendia. “Durante esta conversa (…), percebi que Eisenhower não estava suficientemente informado sobre a Operação Pan-Americana”, declara Juscelino na obra já citada. Para o chefe do Executivo nacional, o homem da Casa Branca até se mostrara simpático ao movimento, “mas ignorava que o Departamento de Estado, reincidindo nos erros do passado, vinha tentando transformar a questão em simples pretexto para conferências internacionais”.

Poderes limitados

Ao deixar a futura capital, um estonteado Dwight Eisenhower ainda ouvia do insistente Juscelino Kubitschek as defesas da Operação Pan-Americana. O primeiro objetivo do brasileiro – ter apoio do chefe de Estado norte-americano com relação a Brasília, o que seria imediatamente jogado nas disputas com a oposição – estava garantido. No segundo, e talvez principal, ainda não obtivera sucesso. Um pouco sem paciência em meio aos cortejos que se seguiriam no Rio de Janeiro e em São Paulo, Eisenhower chamou Juscelino de lado.

Após nova explanação sobre a importância do apoio estadunidense ao desenvolvimento econômico e social da América Latina – e também novas queixas acerca da atuação do Departamento de Estado -, o presidente norte-americano declarou que o presidencialismo tem suas peculiaridades. “Infelizmente, nem tudo o que um presidente determina é cumprido à risca”, disse ao colega mineiro. Conforme disse, os relatórios lidos em Washington indicavam um bom desenvolvimento da integração do continente americano, sendo, portanto, as soluções uma questão de tempo. Apesar disso, concordou que a reivindicação de Kubitschek era justa, já que ele dera os primeiros pontapés para o acordo.

Um ponto tanto quanto incômodo para JK, como uma virada no posicionamento dos interlocutores, foi o Fundo Monetário Internacional (FMI). Poucos meses antes, ainda em 1959, Kubitschek levara o Brasil a romper com o FMI graças às constantes recusas em abertura de créditos – algumas delas relacionadas diretamente à Barragem do Paranoá e ao prédio do Congresso Nacional. O organismo teoricamente global se incomodava, por assim dizer, com o descontrole do governo brasileiro sobre o processo inflacionário (também diretamente ligado à construção de Brasília) e à recusa do presidente em adotar medidas austeras.

Conciliador, Eisenhower questionou JK se não estaria disposto a reconsiderar seu posicionamento em relação ao FMI. “Faria com prazer, presidente, desde que seus diretores abram mão das exigências formuladas”, devolveu JK, afirmando que tais medidas atolariam o desenvolvimento brasileiro. Pouco depois de um mês, o embaixador brasileiro nos Estados Unidos contactou o presidente a respeito da intenção do fundo em reatar com o país. Um ano após o rompimento, o FMI buscava a reconciliação com o Brasil.

“Assinarei no avião”

Durante toda a estadia, conforme contam os jornais da época e os registros de Juscelino, Dwight Eisenhower se mostrou feliz com a recepção brasileira, e disposto a colaborar tanto quanto lhe era possível com o país em desenvolvimento, que, finalmente, dava um passo para o futuro ao invés de recuar. Portou-se com deferência ao colega brasileiro, e inclusive teve um dia em branco no Planalto Central com relação à Presidência dos Estados Unidos, em respeito àquele que tocara a obra com tanto afinco durante os quatro – e não dois – anos finais da década de 1950.

“Assinarei todos os papéis no avião”, declarou Eisenhower. “O primeiro ato oficial a ser assinado, em Brasília, deve sê-lo pelo presidente Kubitschek”, disse o estadista norte-americano. A bem da verdade, o documento inaugural na região se dera ainda em 1956.

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