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60 Anos, 60 Histórias

A Velhacap versus a Novacap

“Vou-me embora e não levo saudades da GuanabaraVou-me embora para BrasíliaPois Brasília é joia rara”José Rosas em “Me leva, presidente”

Redação Jornal de Brasília

06/04/2020 9h36

Olavo David Neto e  Vítor Mendonça
[email protected]

Os prédios já se anunciavam no horizonte candango, altivos e majestosos, à espera da inauguração da cidade. Conforme se aproximava a mudança da capital brasileira, e enquanto o governo traçava os planos para realocar o serviço público nacional, muito se discutia como empregados estatais deixariam as vidas às margens da Baía de Guanabara para desembarcar num cerrado seco, isolado e, até então, parcamente habitado. Era o embate da civilização já formada com o núcleo urbano que, àquela altura, sequer fora inaugurado. O novo, republicano e federativo, contra o velho, imperial, escravagista e autoritário.

À época, a mudança interessava à maioria dos mais de 70 milhões de brasileiros, segundo recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1960. Eram os filhos deste solo há muito esquecidos pela simples insistência do Brasil em se gerir por e para o litoral, sobretudo ao Sul. Uma minoria, porém, também arregalava os olhos e fazia cálculos com o projeto mudancista. Ainda conforme o IBGE, cerca de 363,7 mil pessoas trabalhavam diretamente na Administração, no Legislativo ou no Judiciário federais.

Caberia a elas, portanto, a decisão de servir ao país no coração do território nacional ou na beirada. Muitos tinham o sentimentos bairrista de deixar a cidade onde moravam, incluindo imóveis próprios, famílias e outros fatores da vida cotidiana. Havia, também, a preocupação do que seria daquele efervescente centro cultural – responsável por tantos movimentos brasileiros, fosse como difusor do samba ou como berço da bossa-nova – sem que as maiores personalidades da República ali vivessem.

Ponto fundamental era a expectativa de deixar uma cidade com mais de dois milhões de habitantes para fixar raízes em um planalto deserto de horizonte infindável, com pouco menos de 150 mil pessoas no início de 1960. Os argumentos de um lado a outro repetiam-se, às vezes até remontando às Assembleias Constituintes de 1891, 1934 e 1946. Mais uma vez, vinha à tona o debate em torno das condições ofertadas ao serviço público numa capital da República.

Guerra política

As batalhas mudancista do governo JK no Congresso Nacional também se mostravam árduas. Como dito ao longo deste especial, os projetos encaminhados à análise e aprovação legislativa pelo Executivo, em boa parte só foram aprovados como armadilha para que Juscelino abraçasse de vez a construção da capital – tida por muitos como impossível no período proposto – e cavasse a própria cova, enterrando definitivamente sua carreira política. Com o andamento da construção, porém, os adversários da empreitada viram-se forçados a mudar o discurso.

À medida que a crítica se direcionava ao empreendimento em si, custoso, desnecessário e mesquinho, segundo os opositores. Depois das primeiras inaugurações, como o Brasília Palace e o Palácio da Alvorada, o alvo eram as condições de vida dos funcionários que saíssem do Rio em direção ao Planalto Central. Cada um adaptava-se como podia ao andamento das obras, sendo os opositores responsáveis pelas maiores guinadas nos tons das falas.

Ferrenhos inimigos de Juscelino – e de tudo que ele representava – os membros da União Democrática Nacional (UDN) encabeçavam o pelotão de fuzilamento à meta-síntese. Senador pelo Mato Grosso, João Vilas Boas, em discurso no plenário do Palácio Monroe, sede do Senado até 21 de abril de 1960, preocupava-se com as condições para o trabalho parlamentar na nova capital.

“Não se justifica (…) que se confinem os parlamentares em ambientes sem janelas, fechados às comunicações externas, servidos por luz artificial”, disparou o legislador.

“Ali, onde o sol esplende e a temperatura amena devem ser um estímulo para a vida, ficaremos circunscritos numa catacumba”, finalizou.

Quem viver, verá

Também presente nos quadros da UDN, o deputado baiano Otávio Mangabeira atacou “o colapso geral da vontade” que se deu para permitir a construção do novo centro administrativo. “Ninguém acredita que Brasília, uma cidade em construção, possa oferecer condições de vida aos funcionários e de funcionamento aos órgãos que para lá estão sendo arrastados”, arriscou o parlamentar. “O historiador de amanhã achará nos jornais (…) depoimentos de que dão Brasília acabada, perfeita, e o sr. Juscelino Kubitschek como o homem que transformou a nação num coro feliz para louvar-lhe a grandeza, a sabedoria e o poder”, discursou.

Ao fim da fala, Mangabeira bravateou contra o andamento do mandato de JK e se postou como combatente das ações governamentais. “É contra essa vergonha que estou conclamando. Vejo Brasília, no momento, apenas como um símbolo do regime de subversão em que vivemos”, criticou.

Em seguida, invocando as suas mais de sete décadas de vida, pediu mais tempo na terra para crer, de fato, na mudança. “Eu quero viver para ver o Congresso mudar-se a 21 de abril de 1960 e funcionar no deserto goiano – é só vendo que acredito”, encerrou o ex-governador baiano, que não esteve presente à primeira sessão da Câmara em Brasília e faleceu a 22 de novembro de 1960. Este assunto, entretanto, veremos mais à frente.

Parecia até um frevo

Alguns engajados em manter o poder público no litoral circulavam em repartições conclamando os servidores a negarem os pedidos de transferência por parte do Estado brasileiro. Usavam como mote a suposta falta de escolas e hospitais, além de questões de cunho econômico e imobiliário. No alvorecer de 1960, a campanha contra Brasília ganhou força — sobretudo pela proximidade do Dia de Tiradentes. “Elementos adversários do governo agiam nas repartições públicas, explorando os casos pessoais dos servidores, de forma a predispô-los a uma resistência à ordem de mudança”, relata Juscelino em Por Que Construí Brasília.

“Problema de educação dos filhos, a cessação de residência em apartamento próprio, a perda de emprego extra em qualquer setor privado — tudo isto era lembrado”, escreve JK. Apesar dos esforços, Brasília era muito popular entre a sociedade brasileira. Some-se isso aos incentivos governamentais para a remoção do funcionalismo – como aumentos salariais, ajuda de custo e outros benefícios que abordaremos em outra reportagem —, e estava composta a fórmula para que a nova capital não carecesse de mão de obra para o serviço estatal.

Assim, as listas que passavam nos escritórios mostravam mais adeptos que contrários à mudança.

Guerra cultural

A rivalidade entre a futura e a antiga capital deixou a seara política e chegou à sociedade. A cultura, sempre tão viva no Rio, fez-se presente no debate com músicas tanto de defensores da transferência quanto de críticos. As canções, sempre recheadas de criatividade, versavam sobre a falta que o cenário quase paradisíaco da parcela turística do Rio de Janeiro faria no novo centro de poder do Brasil, as perspectivas para o país de Brasília e desejos pessoais dos compositores.

Brasília Capital da Esperança, composta por Cid Magalhães em parceria com Ivo Santos e interpretada por Jorge Goulart, “E na riqueza dos sons/vou encontrar bem feliz/o ritmo e a melodia/e ofereço a Brasília/capital do meu país”, diz o samba.

Outra composição é Me leva, seu presidente, de José Rosas, que exalta a capacidade oratória de Juscelino e se desfaz em amores pela cidade ainda em construção. “Vou-me embora e não levo saudades da Guanabara/vou-me embora para Brasília/pois Brasília é joia rara/Aquilo é um paraíso/Juscelino me falou/Me leva, me leva, seu presidente que eu vou”, diz o samba.

Aldacir Louro, Sebastião Mota e Edgard Cavalcanti, porém, preocupavam-se com os festejos. “O carioca/da lágrima cair/se o reinado de Momo/também se transferir”, versa a canção. Em tom de lamento, Carnera e Sebastião Lopes citavam, saudosos, os monumentos que ficariam para trás.

“Brasília não tem Carnaval/nem é Cidade Maravilhosa/Não tem a praia de Copacabana/com garotada tão bacana/Não tem o Cristo Redentor/a Guanabara em todo seu esplendor/Não tem o colosso do Maracanã/Mas é o Brasil de amanhã”, diz a letra de Adeus, Emília.

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