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60 Anos, 60 Histórias

A trilha do Anhanguera

“Verde que te quiero oro.Bandeiras removendo a terra.Esmeralda que aguarda agoraNo riacho além de Tordesilhas”O Caçador de EsmeraldaJoão Bosco e Aldir Blanc

Redação Jornal de Brasília

31/01/2020 7h29

Em busca do ouro e das pedras preciosas

A aventura para o interior

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

Desde seus primeiros passos pelas terras americanas, os desbravadores portugueses e espanhóis ouviram relatos fabulosos sobre as terras que havia além da Serra do Mar. Ou “A Muralha”, como a apelidaram. Histórias de lugares cobertos de ouro e pedras preciosas. A história que chegaria no dia 21 de abril de 1960 à inauguração de Brasília é também uma história de cobiça. Quando a economia açucareira dos engenhos do litoral brasileiro começou a não dar mais o lucro de outrora, com a concorrência cada vez mais acirrada de outras fazendas no Caribe, a corrida pelo ouro e pelas pedras preciosas intensificou-se a cada notícia sobre a existência das riquezas. Uma cobiça que se associava à necessidade: de alguma forma, o interior da imensa terra descoberta precisava ser conquistado.

Na verdade, ainda antes do que ficou conhecido como “descobrimento”, as informações que chegavam à Europa já falavam das grandes terras americanas e do seu potencial. Não fosse assim, não teriam portugueses e espanhois assinado um tratado, em 1494, dividindo as terras que oficialmente ainda nem tinham descoberto. Quando a frota de Pedro Álvares Cabral desembarcou na região de Porto Seguro, na Bahia, em 22 de abril de 1500, seus ocupantes já sabiam que a faixa de terra que lhes pertenceria movia-se para o oeste até o limite de 370 léguas (cerca de 1.786 quilômetros) além do arquipélago de Cabo Verde. Era o que determinava o Tratado de Tordesilhas.

Assim, como foi mostrado no primeiro capítulo desta série especial, publicado no dia 29 de janeiro, tal limite ficaria a cerca de 100 quilômetros de Brasília. Passaria bem no meio da praça central do vilarejo de Olhos D’Água, em Alexânia (GO), invadindo o balcão do Bar Museu, um pequeno refúgio boêmio que tem entre suas atrações justamente marcar a linha de Tordesilhas. Se tal limite tivesse sido respeitado, o centro geográfico do Brasil hoje ficaria bem longe de Brasília. Estaria em algum ponto do norte da Bahia. No entanto, alguns eventos ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII “empurraram” a linha que dividia o Mundo Novo mais para o oeste do país.

O primeiro deles foi a União Ibérica, entre 1580 e 1640, período em que Portugal esteve sob jugo espanhol (na próxima página, o brasão da União Ibérica). Com a fusão das potências, acarretada por uma crise na sucessão do trono português após a precoce morte do Rei D. Sebastião, os limites do tratado, uma vez que tudo passou a pertencer a um mesmo reino, se tornaram inócuos.

Réplica da cruz de madeira trazida por Anhanguera está fincada no centro da cidade de Goiás. Foto: Rudolfo Lago

Sem o limite, cresceu a cobiça. Um desejo de riqueza que, mais tarde, os compositores João Bosco e Aldir Blanc caracterizariam como uma febre de amor, na canção “O caçador de Esmeralda”, imortalizada na voz de Elis Regina. Em busca de ouro e pedras preciosas, como as esmeraldas, organizaram-se as Bandeiras. Com capital privado, mas com permissão e conivência da coroa portuguesa, as jornadas rumavam, sobretudo, da província de São Paulo em direção aos limites territoriais em voga à época. Com ganas de encontrar ouro no interior do país, escravizar e dizimar populações indígenas para mapear o território ainda desconhecido não eram preocupações para os expedicionários. Personagens como o bandeirante Anhanguera foram fundamentais para a consolidação das fronteiras que desenham o Brasil atual.

Bandeiras no Plano Piloto

E foi justamente Bartolomeu Bueno da Silva, o “segundo Anhanguera” — herdeiro do nome, da profissão e do interesse do pai pelos relatos de minérios nas terras de Goiás —, que, em 1722, deixou as terras paulistas para se embrenhar país adentro, acompanhado de 152 homens armados e três religiosos. Quem relatou a viagem foi o alferes Silva Braga, cujos textos são delineados em “História da Terra e do Homem no Distrito Federal” (2011), do historiador Paulo Bertran. Os relatos de Braga apontam que Anhaguera e sua trupe passaram inclusive pela atual área do Plano Piloto e do entorno de Brasília.

“Demos com umas grandes chapadas, com falta de todo o necessário, sem matos nem mantimentos, só sim com bastantes córregos, em que havia algum peixe: dourados, traíras e piabas, que foram todo o nosso remédio; achamos também alguns palmitos que chama jaguaroba, que comíamos assados e ainda que é amargoso, sustenta mais que o mais”, relatou o cronista da bandeira. Para Bertran, a região descrita bate com as elevações de Luziânia e Gama, que formam a depressão onde se instalou, quase dois séculos e meio à frente, a terceira capital brasileira.

Além da descrição geográfica, o relato de Silva Braga mostra que os bandeirantes chegaram à região de Brasília famélicos e carentes de tudo. “Aqui nos começou a gente a desaparecer de todo; morreram-nos quarenta e tantas pessoas (…) ao desamparo”, registrou o alferes. Bertran relaciona o fato a um período bem conhecido pelos candangos. “Pelos nossos registros, devia ter-se dado esse episódio em fins de setembro de 1722”. Ou seja, no auge da seca.

A interiorização elitizada

“Qual é o local mais conveniente para fixar a sede do Governo Imperial?”, indagou-se o Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen. De acordo com o também militar, era necessário que, baseado nas ameaças marítimas e de saúde, o local da nova capital dispusesse de novidade geográfica, mas com possibilidade de ligação com os centros econômicos do país independente. “A capital do Império não deve ser em porto do mar, sobretudo graças à invenção dos caminhos de ferro; podemos, em algumas horas, comunicar com a beiramar a qualquer ponto do sertão”, relatou em seu livro “A questão da capital”.

A intenção era que os tais “caminhos de ferro” sistematizassem o transporte de pessoas e de materiais entre a nova capital e os pólos econômicos e demográficos de relevância, sendo eles Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia, mas sobretudo a cidade carioca, pela relevância portuária. A construção de uma ferrovia para o centro do país seria o único empecilho para a transferência da cidade-sede. Até 1877, ano em que Varnhagen materializou as ousadas ideias em seu livro, o Brasil contava com oito trajetos locomotivos.

A primeira justificativa para uma capital no ponto central do Império brasileiro corresponde à expectativa de uma união e ponto de conexão entre os extremos do país. “Qualquer ponto dele, por distante que imaginemos, nunca será tanto que não possa, no intervalo de horas, comunicar-se com o porto mais próximo do litoral por um caminho de ferro indispensável”, elege o autor. Apesar do ideal de conexões entre as várias partes do país, o planejamento para a troca era a comum solução para manter a elite o mais distante possível da massa populacional. A essa altura, a demografia carioca superava 275 mil pessoas, de acordo com o Atlas Histórico Brasileiro (CPDOC), do IBGE.

No entanto, mesmo sendo transferida para as regiões interioranas do Brasil, a mentalidade resistiria à saída do litoral. Uma das intenções era que “a maior soma possível de capitais produtivos” fosse levada para a cidade costeira. A estratégia de troca da capital alcançava também o significado monetário da palavra, revertendo para o Rio de Janeiro a maior parte dos lucros de possíveis crescimentos econômicos na nova sede do poder. Como retorno, a elite teria os benefícios de consumo advindos do litoral. O próximo “centro de luxo”, como descreve Varnhagen, seria também o refúgio paradisíaco dos plutos do Império.

De acordo com o historiador Kelerson Semerene Costa, da Universidade de Brasília, a interiorização da capital traria benefícios não somente aos nobres, como também para o país, servindo de argumento para que a região central também passasse a ser ocupada. Não havia ligações sociais e econômicas maciças entre a capital no litoral e o interior. “Permaneceram regiões muito pouco povoadas com baixíssima densidade demográfica, enquanto a população ia crescendo mais intensamente em outras áreas do país. Embora o centro-oeste e a Amazônia representassem cerca de 70% do território brasileiro, tinham talvez menos de 5% da população total brasileira”.

O desafio era encontrar uma maneira de povoar os considerados “grandes vazios demográficos”, embora em tempos coloniais fossem povoados também por uma população indígena ainda desconhecida pelos desbravadores da época. A relevância da mudança era tamanha que influenciaria o desenvolvimento interiorano, podendo modificar radicalmente a forma de ocupação do território brasileiro.

SEGUNDA-FEIRA: Os inconfidentes e a criação de Brasília

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