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60 Anos, 60 Histórias

A primeira missa no Planalto

“Para todos os bons brasileiros, esta páscoa de 1957 está sendo a venturosa da descoberta do Brasil, nesta epifania, nesta alvorada de Brasília” Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, que rezou a primeira missa

Olavo David Neto

12/03/2020 13h38

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
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Mesmo antes de se definir o traçado que teria a futura sede do poder nacional, como visto na última reportagem, operários, engenheiros e máquinas já ocupavam a área demarcada no cerrado para a construção da capital. Ainda em 1956, os primeiros candangos batiam martelos para as fases iniciais das obras, principalmente as de relevância logística — e que permitiriam a chegada de material para as futuras edificações que se ergueriam do barro vermelho.

A Companhia Urbanizadora da Nova Capital, para se instalar na cidade em construção, ergueu os galpões que lhe serviram de base, estando, assim, apta a receber o corpo diretor e os funcionários da empresa. Como os construtores que chegaram nos primórdios da empreitada eram acomodados em barracas de campanha cedidas pelo Exército, foi preciso construir moradias — tanto as coletivas, para operários solteiros, quanto as individuais, para os casados .

Com um aeroporto provisório (o Vera Cruz, como visto na 22ª reportagem deste especial), faltava o definitivo. A previsão de inauguração das pistas de pouso comerciais era para março seguinte — mesmo mês em que ocorreu a escolha do Plano Piloto de Lúcio Costa, como visto no texto anterior. Abriram-se estradas de rodagem para ligá-lo aos principais canteiros de obras.

Também datam desta época os projetos do Palácio da Alvorada, residência oficial do chefe do Executivo, o Brasília Palace Hotel, além das instalações de olarias e serrarias para fornecimento do material de construção necessário à epopeia. Neste cenário de início de trabalhos, faltava a visita do homem responsável por convocar todo aquele povo ao trabalho. E ela se deu logo no mês de outubro.

A chegada de JK à sua terra

Saído do aeroporto Santos Dumont, na Zona Sul do Rio de Janeiro, o avião C-47 da Força Aérea Brasileira (FAB) de número 2052 aterrissou no — provisório — aeroporto Vera Cruz às 11h45 do dia 2 de outubro de 1956. A bordo, o presidente do país, Juscelino Kubitschek, e uma comitiva composta, entre outros, pelo general (e futuro marechal) Henrique Teixeira Lott, pelo arquiteto Oscar Niemeyer, pelo engenheiro, deputado e presidente da Novacap Israel Pinheiro e por Ernesto Silva, mudancista de primeira ordem.

No desembarque, os idealizadores da terceira capital do país foram recebidos pelo governador de Goiás, José Ludovico, por Altamiro de Moura Pacheco — responsável pelas primeiras desapropriações do então futuro Distrito Federal —, por Segismundo Mello, que guiou a Operação Dom Bosco, narrada no 28º episódio da série, e por Bernardo Sayão, engenheiro, vice-governador de Goiás e construtor da pista onde o avião presidencial tocou o chão.

A comitiva se dirigiu ao Sítio Castanho — atual Cruzeiro —, onde a extinta Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal instalou uma cruz de madeira. Rodaram pela região e se dirigiram à Fazenda Gama. Lá, JK, segundo Ernesto Silva em O Militante da Esperança e a História de Brasília, sentou-se num tronco caído de árvore e, como lhe era costume, pôs-se a sorrir. “Recordei-me de uma frase de Oscar Wilde [escritor inglês]: ‘sonhador é aquele que percebe a aurora antes dos outros’”, relata Silva.

Na sequência, Lott, “reticente e observador”, conforme o autor, tirou a prova dos nove com o homem da República. “O senhor vai mesmo construir uma cidade aqui?”, questionou. Como resposta, Juscelino rebateu que sim, ergueria a futura capital naquele ermo. E foi além. “General, não só vou construí-la, mas também passarei a faixa ao meu sucessor com o governo já instalado aqui”, profetizou JK.

A vontade de concluir a construção ainda no seu mandato residia no medo do que fariam os próximos governantes se Brasília não fosse o centro político brasileiro no alvorecer dos anos 1960. Para isso, era necessário terminar a empreitada até 29 de janeiro de 1961, fim do período JK à frente do Palácio do Catete. Havia, também, um Projeto de Lei (PL) a respeito da data inaugural em tramitação no Congresso Nacional.

Da oposição, a homenagem a Tiradentes

Sob a alcunha 1.773/56, o PL fora proposto pelo deputado federal pela União Democrática Nacional (UDN) de Goiás Emival Caiado. Apesar da sigla opositora — e da desconfiança com a qual, hoje, é vista a proposição, tida como armadilha para Juscelino —, Caiado apoiava a transferência da capital, motivo da rusga com o jornalista e também udenista Carlos Lacerda, ferrenho opositor do mudancismo.

Aprovado quase um ano depois, o projeto estipulou a inauguração de Brasília em 21 de abril de 1960, em clara homenagem ao alferes Joaquim José da Silva Xavier, ou apenas Tiradentes. Mártir da Inconfidência Mineira — cujos ideais incluíam a independência da então província de Minas Gerais — e herói forjado pela República, o militar (como visto na quarta reportagem deste especial) defendia uma sede de poder longe das fronteiras e de um possível alcance inimigo. Por outro lado, a data jogava contra JK a ampulheta do tempo: ele tinha menos tempo para inaugurar a cidade.

Mesmo com a proposição em análise, Juscelino anunciava a quem quisesse ouvir que a cidade em construção estaria pronta a tempo.

O batismo da nova capital

Ainda com base no relato de Ernesto Silva, o final de 1956 trouxe muita água ao canteiro de obras. O grande volume pluviométrico, inclusive, interrompeu por breves instantes o fornecimento do material necessário à construção. “Os caminhões ficavam atolados entre Anápolis e Brasília e muitas vezes os motoristas, desesperados, ou abandonavam a viatura e voltavam a pé, ou descarregavam a carga para aliviar o peso e voltavam para Anápolis”, conta o membro da primeira diretoria da Novacap.

Continua Silva o relato de que até mesmo veículos de alta potência sucumbiam ao terreno alagadiço. “Houve dia em que mais de cem caminhões estavam atolados na estrada e foi necessária a ida de tratores para prestar auxílio, embora algumas vezes os tratores também atolassem, tal a precariedade da estrada”, relembra o autor de História de Brasília. Em janeiro e fevereiro, a Novacap emitiu pareceres acerca do andamento das obras, detalhando o que acontecia no Planalto Central.

Vista do alto da atual Praça do Cruzeiro, o marco inicial da saga da construção

À esta época, cerca de três mil operários batalhavam contra as precárias condições de trabalho em aproximadamente 200 máquinas. “E, a cada dia, novos contingentes de homens e de máquinas iam se integrando ao grandioso trabalho”, relata Ernesto. Foi nesta leva de trabalhadores que chegou o eletricista João Paulo — “Jorge” — Sarkis. Funcionário da Companhia Prada de Eletricidade em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desembarcou em 4 de março para contribuir com seu quinhão àquela sandice comandada por Juscelino.

Pouco tempo depois, veio a família. “No dia 20 de abril, chegamos minha mãe, minhas duas irmãs mais velhas e eu”, comenta Youssef Jorge, atual presidente da Associação dos Candangos Pioneiros de Brasília. No encalço do pai, ele participou da cerimônia. Realizada em 3 de maio — um ano depois da Operação Dom Bosco, contada na 29ª parte desta série — a primeira missa de Brasília foi celebrada pelo arcebispo de São Paulo, Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta.

A missa teve início às 11h20. Relembrando a cerimônia de 1500, entre portugueses e nativos quando da invasão europeia às terras brasileiras, D. Carlos chamou atenção ao ato histórico em curso. “Para todos os bons brasileiros, esta páscoa de 1957 está sendo a venturosa da descoberta do Brasil, nesta epifania, nesta alvorada de Brasília”, pronunciou o arcebispo.

“Eu estava lá”

Então um menino de seis anos, Jorge Sarkis, o filho, participou do evento junto à família. Ele aparece em primeiro plano numa clássica foto do evento — disponível no Arquivo Público do Distrito Federal —, à esquerda de uma das irmãs, da mãe e do pai. Apesar da mocidade, lembra de alguns aspectos da capital, como a grande mistura de sotaques e etnias. “Brasília era, na época, um entroncamento que tinha gente de todo canto do mundo. Tinha essa característica de ser cosmopolita”, conta o pioneiro.

O país era predominantemente católico, e a celebração da cerimônia marcou o batismo da nova capital na crença cristã. Assim, funcionários, burocratas, operários e até mesmo as máquinas que abriam caminho entre as tortas árvores do cerrado quase intocado tinham a bênção daqueles tidos como representantes divinos na terra. Como se o céu, tão presente no cotidiano brasiliense, desse aval ao surgimento de uma cidade única naquele inóspito Planalto Central.

O pequeno menino de camisa branca ao lado da família é Jorge Sarkis

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