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Teatro e Dança

Mais que uma dança, um símbolo de resistência na história negra

Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, a capoeira já foi considerada crime

Agência UniCeub

19/11/2025 10h50

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Foto: Ana Paula Rabelo

por Luisa Santos de Mello e Pedro Vianna Duarte

Para quem assiste de longe, os instrumentos de madeira, metal e couro guiam a ginga insólita de uma roda. Entretanto, quem chega mais perto identifica que os movimentos da coreografia preparam o oponente para a luta. No Código Penal Brasileiro de 1890, a capoeira foi criminalizada — com pena prevista em dois a seis meses para praticantes que fossem presos, além da tortura e perseguição — em um projeto de embranquecimento da população. Em 1937, na Era Vargas, o presidente Getúlio Vargas foi convidado por Manoel dos Reis Machado — Mestre Bimba — a assistir uma roda, e revogou a penalidade. 

Mas, foi apenas em 2014 que a prática foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO, por se destacar como um dos principais símbolos de resistência e liberdade negra no Brasil. Atualmente, ela é transmitida por todo o país e também pelo mundo. “A capoeira é imensa. Mesmo depois de 15 anos, ainda me sinto pequeno diante da grandeza dela”, reflete João Campos de 41 anos, contramestre do grupo Nzinga, escola tradicional de capoeira angola, localizada na região central da capital, próximo a rodoviária de Brasília, no Setor de Diversões Sul (CONIC). De acordo com o relatório do Ministério das Relações Exteriores, em 2019, 538 associações promovem o ensino da capoeira em 72 países.

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Foto: Ana Cordeiro
Durante o XI Chamada de Mulher e I Encontro de Mestras Angoleiras, em 2024

Ainda que a luta tenha se popularizado em outros territórios, a essência é 100% afro-brasileira e marcou grandes momentos da história. Com 42 anos no ramo, Eduardo Segovia, mestre Foca — da União de Capoeira do DF (UCDF), focada na prática da capoeira regional — explica: “A história brasileira têm uma correlação forte com a capoeira. Na Guerra do Paraguai, a Guarda Negra era formada por capoeiristas”. E adiciona: “A capoeira sempre foi como o camaleão — ela muda conforme o ambiente, se adapta aos tempos”. 

Nos dias de hoje, a arte da capoeira conquista um público vasto e sem restrições. De acordo com levantamento feito pelo jornal O Globo, estima-se que 6 milhões de pessoas praticam o esporte no Brasil, sendo 35% mulheres. “Na minha sala você encontra advogado, decorador, empresário e trabalhador, todos com a mesma calça, descalços, iguais”, conta Mestre Foca. Na roda, os alunos não se limitam apenas a aprender as movimentações, mas também o respeito, a disciplina, sociabilidade, resiliência, autocontrole e outros valores fundamentais. João salienta: “A capoeira não é uma escola, é uma universidade — e das melhores que a gente tem nesse país.”

O contramestre João destacou no significado do nome do grupo Nzinga, as raízes da cultura negra na história da capoeira, que é uma homenagem direta à rainha africana Nzinga Mbande, liderança política e militar que atuou nos reinos de Matamba e Ndongo, na região que hoje corresponde a Angola. Ele ressalta que, apesar de sua importância histórica como símbolo da resistência contra a colonização portuguesa e a escravização do povo africano, Nzinga ainda é pouco estudada nas escolas brasileiras, reflexo de uma educação marcada pelo racismo estrutural. João também destaca que a palavra “ginga”, central na capoeira, deriva do nome da própria rainha, reforçando a profundidade dessa herança africana presente na prática. “A gente estuda de todos os reis e rainhas ingleses, mas dessa grande rainha africana, infelizmente a gente não estuda” declara João. 

A musicalidade é a alma da capoeira, é ela que conduz o ritmo e dita o tempo do jogo, onde as conexões com as raízes africanas ganham vida. “O que é cantado influencia o jogo, e o jogo influencia o que é cantado”, comenta João.

Cada instrumento tem o seu papel. O berimbau comanda a roda, ele que define o rumo da música. Enquanto os outros ao seu lado, o atabaque, o pandeiro, o agogô e o reco-reco transformam a luta em uma sinfonia ancestral em dança.Os cantos, passados de geração em geração, carregam histórias de resistência, ensinamentos e memórias do povo negro. “Através do toque do berimbau e do canto você pode tornar o jogo mais leve, mais intenso ou até passar um recado”, explica João.

Em  novembro, mês que celebra a Consciência Negra, a capoeira rememora a luta pela perseverança, emancipação e uma sociedade sem preconceitos. “No dia em que a capoeira deixar de ser um instrumento de luta e liberdade, ela deixa de ser capoeira”, enfatiza o contramestre. Para ele, a existência da dança já é uma forma de preservar e valorizar as tradições africanas. A luta não se limita a gênero, cor ou sexualidade, enfatiza João: “Se a capoeira não é para todo mundo, então não há liberdade nela”. 

Na trajetória pessoal, João compartilha que o contato formal com a capoeira começou entre 2011 e 2012, após uma experiência marcante durante uma visita a um quilombo na Bahia. Ao assistir, pela primeira vez, um jogo de capoeira angola, decidiu buscar um grupo ao retornar para Brasília, e encontrou o Nzinga. Desde então, afirma que a capoeira passou a moldar seus valores, e descreve a prática como uma verdadeira filosofia de vida que se tornou uma das grandes paixões. “É como uma filosofia de vida mesmo. E eu sou muito grato a ela por isso”, declara o contramestre.

Já o Mestre Foca, mostra como a capoeira se tornou o centro da vida pessoal e profissional. Essa decisão marcou um ponto de virada que o levou a consolidar a arte como base de sustento e identidade. Hoje, ele declara: “Remo contra a maré. Hoje eu vivo profissionalmente da capoeira”, e enfatiza que essa transformação alcançou também a família “a minha esposa é profissional de capoeira também”. 

Para Foca, a capoeira não apenas mudou sua vida, mas se tornou um projeto coletivo, uma herança que atravessa gerações e reafirma a força cultural da arte dentro e fora da roda. Mais do que um esporte, que uma religião ou arte, a capoeira é um espelho da alma do Brasil. Ela foi criada através de um ato de resistência do povo negro em meio a luta deles por uma vida digna, moldada por seus ritmos, corpos e vozes, um símbolo da identidade do país e da força das tradições afro-brasileiras.

De acordo com os dois entrevistados, a capoeira é uma cultura reconhecida mundialmente, sua dança ultrapassa fronteiras e sua luta une gerações em busca da liberdade, do respeito e da ancestralidade. Ao participar de uma roda de capoeira, seja ela angola ou regional, vai enxergar a história da perseverança de um povo excluído que encontrou a verdadeira liberdade.

Em cada toque de berimbau, em cada ginga, a nação pode reencontrar suas raízes e reafirmar que preservar a capoeira é preservar a história do Brasil. Mestre Foca finaliza: “Cuide da capoeira com carinho. Ela é nossa identidade, nosso pertencimento e ancestralidade. Tudo que conquistei na vida foi por meio dela”. 

Ambos os grupos possuem redes sociais, e participaram de eventos no Dia da Consciência Negra. O grupo Nzinga participará da Marcha das Mulheres Negras 2025, em Brasília, no Eixo Monumental, no dia 25 de novembro. Enquanto a UCDF marcará presença no Festival Consciência Nagô, em Brasília, nos dias 20 a 23 de novembro.

Instagram do Grupo Nzinga.

Instagram do Grupo UCDF.

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